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Origens da Islamofobia 02: O Mito de Mahound
Por Thiago Damasceno
As salamu alaikum!
Estou de volta com o segundo
texto da série Origens da Islamofobia.
Lembrando que, para essa série, me baseei principalmente nesse livro,
intitulado “Maomé: uma biografia do Profeta”, de Karen Armstrong. O link
para compra você encontra logo acima. A partir desse estudo, considero que
as origens da islamofobia estão no período medieval, principalmente com a
divulgação do denominado Mito de Mahound e nos acontecimentos das Cruzadas. Hoje,
irei abordar sobre esse mito.
Introdução
Como já visto em vídeo-aulas
anteriores, no período medieval, especificadamente em princípios do século VII
o Islã surgiu, na cidade de Meca, na Península Arábica, onde hoje é o Reino da
Arábia Saudita. Seu fundador histórico, assim considerado, foi o mercador Muḥammad
Ibn ᶜAbdu Allāh (570-632), conhecido posteriormente, pelos seus seguidores,
como “Profeta” ou “O Profeta”. Lembrando que “Idade Média”, “período medieval”
ou “medievo” é um dos recortes temporais em que os estudos históricos
ocidentais tradicionais dividiram a história. Vamos adotar esses recortes para
termos uma visão didática melhor das experiências humanas no Tempo.
De início, o Islã se resumia
a uma mensagem religiosa e social, mas com o tempo, se tornou também um poder militar
e político. Isso influenciou muito no surgimento do medo, do ódio e da aversão
a muçulmanos e à cultura islâmica, pois os inimigos políticos e militares do
Islã e dos muçulmanos não os viam com bons olhos, obviamente, por seres
inimigos. Um vestígio disso é o denominado Mito de Mahound. “Mahound” é uma
denominação errada dada ao Profeta Muḥammad, mais conhecido como “Maomé”, nomeação
também errada. Esse processo de uso de nomes é complexo, mas no decorrer dos
séculos se observou isso, um contato, escrita e pronúncias equivocadas em
relação ao nome do fundador do Islã. A maioria dessas denominações erradas tem
sentido pejorativo, como vamos ver no caso do mito de Mahound.
Mito
Precisamos, antes de tudo,
entender o que é mito. A palavra “mito” tem hoje diversas definições. Aqui eu
vou definir esse termo bem basicamente, pois nosso propósito ainda não é exatamente
esse.
Para estudos em História,
vamos considerar mito como uma narrativa sobre determinado acontecimento ou
pessoa, não necessariamente uma narrativa verdadeira ou falsa, pois os
critérios para se analisar um mito, em História, não são esses. O mito deve ser
encarado como uma narrativa, uma história sobre algo ou alguém, uma
interpretação. Para as sociedades antigas, era a verdade absoluta, por exemplo.
Hoje, para nós, com pensamento cientificista, o mito não é verdade absoluta,
embora carregue suas próprias verdades. Logo, o mito é uma forma de
interpretação do mundo e dos seus eventos, expressando como uma cultura entende
determinado tema ou assunto.
Nas palavras do pesquisador Everardo Rocha: “O mito é uma
narrativa. É um discurso, uma fala. É uma forma de as sociedades espelharem
suas contradições, exprimirem seus paradoxos, dúvidas e inquietações. Pode ser
visto como uma possibilidade de se refletir sobre a existência, o cosmos, as
situações de ‘estar no mundo’ ou as relações sociais”. (ROCHA, 1985: 07).
Lembrando que, se tratando
do período antigo e medieval, os mitos são narrativas com forte teor
sobrenatural e religioso. Portanto, são comuns nos mitos mais antigos elementos
fantásticos, milagrosos ou mágicos ligados às religiões. E lembrando: não
associe mito apenas à Antiguidade e às civilizações mais famosas do período,
com a egípcia, a grega e a romana. Toda sociedade e cultura, no decorrer da
história, produziu seus mitos.
Agora eu vou direto ao
ponto, que é falar sobre o Mito de Mahound e, depois, partir para uma análise sobre
ele.
O mito
de Mahound
O mito medieval de Mahound é
sobre Muḥammad, o Profeta do Islã, relacionando-o com a escatologia cristã, ou
seja, com a doutrina e o conhecimento cristãos sobre os Últimos Tempos da
humanidade na Terra. Nesse mito, o Profeta Muḥammad, designado como Mahound,
era visto como um impostor, um charlatão que dizia ser profeta para enganar
todo mundo. Ele era considerado um libertino sexual e um homem muito violento
que conseguia adeptos à sua religião apenas à força, por meio da espada, da
conversão forçada. Mahound era também um mágico que realizava falsos milagres
para convencer os árabes crédulos e destruir as igrejas cristãs no norte da
África e no Oriente Médio.
Segundo Karen Armstrong (2002),
o Mito de Mahound foi desenvolvido na Europa no século XII, junto a outros
mitos. Mas será que ele surgiu exatamente nesse período?
É difícil rastrear um mito
para dizer quando ele surgiu. Contudo, podemos fazer algumas deduções, como
dizer que o mito de Mahound foi originado entre os séculos cristãos VII e VIII,
que dariam os séculos I e II do Islã. Por quê? Porque no século VII o Islã foi
fundado e, nesse mesmo século, se tornou um império, principalmente durante a
soberania do segundo califa, Omar Ibn al-Khattab, entre os anos cristãos 634 e
644. E também porque no século VIII já circulava no ocidente europeu uma
biografia sobre o Profeta feita por monges cristãos do mosteiro de Leyre, próximo
a Pamplona, ambos localizados hoje na Espanha. Essa biografia tinha algumas
ideias sobre o Profeta já inspiradas no Mito de Mahound, como dizer que ele
havia morrido no ano 666, e não no ano 632. Lembrando que o ano 666, para a
escatologia cristã, é o número da Besta dos Últimos Dias. Como Armstrong (2002)
diz, esse mosteiro se encontrava nos confins do mundo cristão e tremia diante
do avanço e crescimento do império islâmico.
Vamos ver um caso curioso
sobre o uso desse mito e dessa biografia para entendermos mais sobre os
princípios da islamofobia.
As interpretações
de Paulo Álvaro e Eulógio
Em meados do século IX, por
volta do ano 850, ocorreram alguns episódios violentos envolvendo cristãos e
muçulmanos em Córdoba, cidade atualmente localizada na Espanha. Naquele
contexto, os muçulmanos detinham o poder político na cidade e no sul e no centro
da Península Ibérica. Como eu já disse antes, esse domínio político islâmico na
Península Ibérica durou, oficialmente, de 711 a 1492. Esse conjunto de eventos
que ocorreu em Córdoba receberam o nome de “Os mártires de Córdoba”. Em um
vídeo futuro falarei sobre isso. Por enquanto, quero destacar aqui dois
personagens desse contexto: Paulo Álvaro e Eulógio. Paulo Álvaro era um
escritor hispânico, não religioso, e Eulógio era um padre. Ambos argumentavam
que os mártires cristãos em Córdoba eram “soldados de Deus”. Esses mártires
eram pessoas de todos os tipos e posições sociais que eram mortos a mando das
autoridades muçulmanas após insultarem o Profeta Muḥammad, crime passível de
execução.
Esses dois homens tiveram
acesso àquela biografia do Profeta que falei e, misturando o texto biográfico
com o mito de Mahound, fizeram uma interpretação interessante, cuja base era o
seguinte: a ascensão do Islã era uma preparação para a chegada do Anticristo, sendo
esse o grande impostor descrito no Novo Testamento, cujo reino anunciaria os
Últimos Dias.
A interpretação desses dois
autores era baseada em algumas informações da escatologia cristã.
A Segunda Epístola aos
Tessalonicenses, um dos livros da Bíblia Sagrada, fala que Jesus só retornará
com a Grande Apostasia, que acontecerá quando um rebelde estabelecer seu
reinado em Jerusalém e desviar muitos cristãos com doutrinas sedutoras.
Indo nesse vertente, o livro
do Apocalipse fala de uma grande Besta, marcada com o número 666, que irá
rastejar para fora do abismo e se entronará no Monte do Templo, na cidade de
Jerusalém, para governar o mundo.
Lembro aqui que a
interpretação de Paulo Álvaro e Eulógio também foi disseminada naquele meio. Desse
modo, para eles e para muitos outros cristãos medievais, o crescimento e fortalecimento do Islã eram
relacionados com a chegada do Anticristo. O rebelde que estabeleceria seu trono
em Jerusalém para enganar muitos cristãos com doutrinas sedutoras era o Profeta
Muḥammad, que se dizia profeta mesmo após a primeira vinda de Cristo, ainda
mais que os muçulmanos tinham conquistado Jerusalém em 638 e construído duas
grandes mesquitas no Monte do Templo. Assim, aos olhos cristãos ocidentais,
parecia que os muçulmanos estavam controlando o mundo. Além disso, o ano 666
estabelecido como o ano de morte do Profeta o relacionava diretamente com a
Besta que viria do abismo.
Em suma, para os cristãos
medievais que acreditavam no mito de Mahound e tinham acesso a uma obscura
biografia cristã do século VIII sobre o Profeta, o Islã, seu fundador e sua
expansão se encaixavam perfeitamente em profecias apocalípticas e em discursos
e imagens negativas e diabólicas. Eis aí uma das origens da islamofobia. O mito
de Mahound e obras poucos objetivas sobre o Profeta do Islã não o viam como uma
figura histórica, mas como um agente do Mal.
Considerações
finais
Um mito diz muito sobre a
sociedade que o produziu. Como aponta Armstrong (2002), o Islã era a grande
potência do período medieval, enquanto que os reinos europeus ocidentais estavam
divididos e enfraquecidos, pelo menos até o final do século XI, período de
início das Cruzadas. Esse mundo europeu, ameaçado por invasões não só de
muçulmanos, mas também de nórdicos, asiáticos, dentre outros, tinha medo do
avanço político, militar e cultural dos muçulmanos.
E como se não bastasse tudo isso, o
crescimento e o sucesso do Islã também colocavam, aos cristãos, uma questão
teológica delicada e importante: se o cristianismo era a religião verdadeira e
tudo acontecia segundo a vontade de Deus, como Deu permitia a prosperidade
dessa fé profana? Teria Deus abandonado seu próprio povo? (ARMSTRONG, 2002).
Além disso, de início, o
cristianismo também não considerava o Islã como uma Revelação ou religião
independente, mas como uma heresia, uma forma fracassada de cristianismo, uma
heresia violenta que glorificava a guerra, a morte e o assassinato.
Se você gostou dessa segunda
parte da série Origens da Islamofobia, não perca a próxima e última
parte, onde vou comentar também sobre as Cruzadas.
As salamu alaikum e até
a próxima!
Referências
ARMSTRONG, Karen. Maomé:
uma biografia do Profeta. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
ROCHA, Everardo. O que é
mito. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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