segunda-feira, 28 de maio de 2018

Al Ḥurūf: Relatos de Pesquisa #01 - uma palestra de um embaixador sírio



Por Thiago Damasceno

Uma palestra de um embaixador sírio sobre a guerra na Síria e um doutorando em História fissurado pelos temas do Oriente Médio: está aí um programaço para sábado! (ou não). Este é o primeiro relato oficial das minhas peripécias e cotidianos como pesquisador e estudioso da história árabe e islâmica. Já deveria ter começado isso bem antes, mas tudo bem. Outros relatos virão.  
A palestra – organizada pelo Comitê de Amizade e Solidariedade Brasil-Síria e pela Federação de Mulheres - foi no Auditório Solon Amaral, na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, em Goiânia, no sábado, dia 19 de maio de 2018, das 15 horas até umas 18 horas. O palestrante foi o embaixador sírio no Brasil Mohammad Khafif. Como convidados, a sociedade no geral. Quando falo “no geral”, foi no geral mesmo, pois o auditório se tornou uma representação do Brasil: cores, etnias, credos, tendências políticas e organizações político-sociais de todo tipo, de mulheres feministas da Mama África e grupos de imigrantes sírios e libaneses até organizações religiosas sírio-brasileiras passando por representantes do PT (Partido dos Trabalhadores), do Sindicato dos Professores da Rede Privada do Estado de Goiás e de uma organização contra o neoliberalismo mundial. Peco em não lembrar os nomes exatos de todos os grupos. Como brinquei com a amiga jornalista que estava comigo: “Só falta aparecer aquela organização que os Mamonas falam em “Uma Arlinda Mulher”: a Associação Internacional de Proteção às Borboletas do Afeganistão”.
Uma matéria jornalística dizia o seguinte sobre o embaixador: “nomeado pelo presidente da República Árabe da Síria, Bashar Al-Assad, um médico oftalmologista, com especialização em Londres, Inglaterra, Mohammad Khafif é formado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Damasco e tem doutorado em Direito Público Internacional pela Universidade de Leipzig na Alemanha”.
Sobre a palestra, a mesma matéria informava o que se segue: “A proposta é desconstruir a ‘versão falsa’ espalhada pelos grandes conglomerados de comunicação do mundo, denunciar a ocupação do seu território por EUA, Israel e Turquia e mostrar os crimes do Estado Islâmico e da Frente Al-Nusra”.
Por essa breve leitura, percebi de antemão que o evento seria complicado, não pelo levantamento, em quantidade grande e diversa, de dados e teorias, mas pela questão da propaganda política pró-Assad, visto como anjo por alguns e como demônio por  outros.
 Mohammad Khafif leu seu brilhante resumo sobre a história da Síria, uma visão panorâmica focando nos conflitos políticos e militares contemporâneos. Ele afirmou que a guerra, que envolve outros países, é uma ameaça à soberania síria e à garantia dos direitos humanos ao seu povo. Nisso ele está certo, sem sombra de dúvida. No entanto, seu discurso não trouxe à tona a complexidade do conflito, alimentado por diferentes grupos políticos e grupos armados, tanto internos quanto externos, com distintos interesses específicos. O embaixador falou em uma conspiração ocidental, comandada pelos Estados Unidos da América, contra o exército sírio, o povo sírio e o governo, conspiração essa que a grande mídia ajuda a divulgar. Seu discurso unificou muitos atores e forças sociais, quando, o que observamos daqui, por meio da mídia e, mais ainda, por meio de sérios estudos acadêmicos, são visões diferentes, cujo breve resumo apresentarei a seguir.
Iniciada em princípios de 2011, após dura repressão do regime Al-Assad às manifestações populares desencadeadas pela Primavera Árabe, a guerra na Síria dura até hoje, fazendo oito anos. As forças externas ao lado do regime Al-Assad são Rússia, Irã e Hezbollah, a milícia libanesa xiita. As forças exógenas contrárias ao governo sírio incluem países como EUA, França, Reino Unido, Arábia Saudita e Turquia. Dentro da Síria, vários grupos armados, desde os mais extremistas, como o Daesh (“Estado Islâmico”), a grupos considerados mais moderados, como o Exército Livre da Síria e o grupo curdo Unidade de Defesa Popular. Esses grupos internos citados são contra o regime Al-Assad e não, não são aliados entre si, o que torna o conflito bem complexo.
Dizendo apresentar a “verdade dos fatos” (expressão um tanto complicada), creio que o discurso do embaixador pecou em não aprofundar mais a temática. Além disso, a propaganda pró-Al-Assad, feita por ele, beirou o risível: ao ser questionado por alguém da plateia sobre como o presidente Bashar Al-Assad estava vivendo com a guerra, o embaixador informou que o presidente estava bem de saúde física e mental, que andava com seu carro sem nenhum segurança pelas cidades e que visitava os enfermos não nos hospitais, mas em suas casas.
Oras, que presidente é esse que consegue tempo e condições para realizar tais atividades em um país devastado há quase uma década pela guerra?
Não quero posar de implicante. Muito menos desconsiderar todo o discurso do embaixador nem defender a guerra. Não é isso. Como historiador, uso discursos como fontes e, em nosso ofício de conhecimento histórico científico, indagamos e questionamos as fontes, pois nenhuma delas carrega Verdades Absolutas, mas suas próprias verdades. Sendo assim, eu levantei, naquele dia, duas questões (de mim para mim):
1 – Por quê e como a família Al-Assad está no poder desde o ano de 1970?
2 – Se certos setores e grupos, tanto sírios quanto brasileiros, defendem um presidente tão carismático, popular e cuidador do seu povo, como explicar a situação histórica dos imigrantes e, principalmente, dos refugiados sírios?
Creio que são questões que devem permear todo esse debate e a reconstrução dos conflitos na Síria, mas tendo em mente que nunca chegaremos à Verdade Absoluta de nada, ainda mais com a História, essa ciência que, como diria o historiador francês Pierre Nora, é uma “reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que não é mais”.
Nessa perspectiva, não podemos reduzir os acontecimentos históricos e, principalmente, os conflito militares atuais, a campos com dois polos, com “vilões” de um lado e “mocinhos” do outro. As alianças internas e externas no contexto da Guerra na Síria também não são formadas por questão de amizades e simpatias, mas por interesses. Por exemplo, além de buscar maior protagonismo no cenário geopolítico mundial, a Rússia apoia o regime Al-Assad porque sua única base militar no Mediterrâneo, a Base Tartus, está no litoral sírio. A construção dessa base teve seus princípios no contexto da Guerra dos Seis Dias de 1967, quando a então União Soviética (URSS) deu apoio tático e militar à Síria contra seu inimigo na ocasião, o Estado de Israel.
Espero, com este relato, ter contribuído para um maior entendimento sobre o evento da Guerra na Síria (2011-) e também para a ideia de estudos históricos mais aprofundados que abordem as complexidades dos interesses e das relações geopolíticas.
As samalu alaikum!

Referências

BRANCOLI, Fernando. O conflito na Síria e a geopolítica no Oriente Médio. In: Chutando a Escada 017 (podcast).
Acesso em 17/05/18.

CLEMESHA, Arlene. Arlene Clemesha – Pânico. In: Pânico Jovem Pan, 30/09/15 (YouTube).
Acesso em: 16/05/18.

KARNAL, Leandro. A Síria é quase que uma advertência para o mundo. In: Rádio Bandeirantes, 07/04/17 (YouTube).
Acesso em: 15/05/18.

VASCONCELOS, Yuri. A humanidade sob os escombros. Guia do Estudante Atualidades, edição 25, 1º semestre de 2017. São Paulo: Abril, 2017, p. 46-53.