Por Thiago Damasceno
Uma palestra de um embaixador
sírio sobre a guerra na Síria e um doutorando em História fissurado pelos temas
do Oriente Médio: está aí um programaço para sábado! (ou não). Este é o
primeiro relato oficial das minhas peripécias e cotidianos como pesquisador e
estudioso da história árabe e islâmica. Já deveria ter começado isso bem antes,
mas tudo bem. Outros relatos virão.
A palestra – organizada pelo
Comitê de Amizade e Solidariedade Brasil-Síria e pela Federação de Mulheres -
foi no Auditório Solon Amaral, na Assembleia Legislativa do Estado de Goiás, em
Goiânia, no sábado, dia 19 de maio de 2018, das 15 horas até umas 18 horas. O
palestrante foi o embaixador sírio no Brasil Mohammad Khafif. Como convidados,
a sociedade no geral. Quando falo “no geral”, foi no geral mesmo, pois o
auditório se tornou uma representação do Brasil: cores, etnias, credos,
tendências políticas e organizações político-sociais de todo tipo, de mulheres
feministas da Mama África e grupos de imigrantes sírios e libaneses até
organizações religiosas sírio-brasileiras passando por representantes do PT
(Partido dos Trabalhadores), do Sindicato dos Professores da Rede Privada do
Estado de Goiás e de uma organização contra o neoliberalismo mundial. Peco em
não lembrar os nomes exatos de todos os grupos. Como brinquei com a amiga
jornalista que estava comigo: “Só falta aparecer aquela organização que os
Mamonas falam em “Uma Arlinda Mulher”: a Associação Internacional de Proteção
às Borboletas do Afeganistão”.
Uma matéria jornalística
dizia o seguinte sobre o embaixador: “nomeado pelo presidente da República
Árabe da Síria, Bashar Al-Assad, um médico oftalmologista, com especialização
em Londres, Inglaterra, Mohammad Khafif é formado em Direito pela Faculdade de
Direito da Universidade de Damasco e tem doutorado em Direito Público
Internacional pela Universidade de Leipzig na Alemanha”.
Sobre a palestra, a mesma
matéria informava o que se segue: “A proposta é desconstruir a ‘versão falsa’
espalhada pelos grandes conglomerados de comunicação do mundo, denunciar a
ocupação do seu território por EUA, Israel e Turquia e mostrar os crimes do
Estado Islâmico e da Frente Al-Nusra”.
Por essa breve leitura, percebi
de antemão que o evento seria complicado, não pelo levantamento, em quantidade
grande e diversa, de dados e teorias, mas pela questão da propaganda política
pró-Assad, visto como anjo por alguns e como demônio por outros.
Mohammad Khafif leu seu brilhante resumo sobre
a história da Síria, uma visão panorâmica focando nos conflitos políticos e
militares contemporâneos. Ele afirmou que a guerra, que envolve outros países,
é uma ameaça à soberania síria e à garantia dos direitos humanos ao seu povo.
Nisso ele está certo, sem sombra de dúvida. No entanto, seu discurso não trouxe
à tona a complexidade do conflito, alimentado por diferentes grupos políticos e
grupos armados, tanto internos quanto externos, com distintos interesses
específicos. O embaixador falou em uma conspiração ocidental, comandada pelos
Estados Unidos da América, contra o exército sírio, o povo sírio e o governo,
conspiração essa que a grande mídia ajuda a divulgar. Seu discurso unificou
muitos atores e forças sociais, quando, o que observamos daqui, por meio da mídia
e, mais ainda, por meio de sérios estudos acadêmicos, são visões diferentes,
cujo breve resumo apresentarei a seguir.
Iniciada em princípios de
2011, após dura repressão do regime Al-Assad às manifestações populares
desencadeadas pela Primavera Árabe, a guerra na Síria dura até hoje, fazendo oito
anos. As forças externas ao lado do regime Al-Assad são Rússia, Irã e
Hezbollah, a milícia libanesa xiita. As forças exógenas contrárias ao governo
sírio incluem países como EUA, França, Reino Unido, Arábia Saudita e Turquia.
Dentro da Síria, vários grupos armados, desde os mais extremistas, como o Daesh
(“Estado Islâmico”), a grupos considerados mais moderados, como o Exército
Livre da Síria e o grupo curdo Unidade de Defesa Popular. Esses grupos internos
citados são contra o regime Al-Assad e não, não são aliados entre si, o que
torna o conflito bem complexo.
Dizendo apresentar a “verdade
dos fatos” (expressão um tanto complicada), creio que o discurso do embaixador
pecou em não aprofundar mais a temática. Além disso, a propaganda pró-Al-Assad,
feita por ele, beirou o risível: ao ser questionado por alguém da plateia sobre
como o presidente Bashar Al-Assad estava vivendo com a guerra, o embaixador
informou que o presidente estava bem de saúde física e mental, que andava com
seu carro sem nenhum segurança pelas cidades e que visitava os enfermos não nos
hospitais, mas em suas casas.
Oras, que presidente é esse
que consegue tempo e condições para realizar tais atividades em um país
devastado há quase uma década pela guerra?
Não quero posar de
implicante. Muito menos desconsiderar todo o discurso do embaixador nem
defender a guerra. Não é isso. Como historiador, uso discursos como fontes e,
em nosso ofício de conhecimento histórico científico, indagamos e questionamos
as fontes, pois nenhuma delas carrega Verdades Absolutas, mas suas próprias
verdades. Sendo assim, eu levantei, naquele dia, duas questões (de mim para
mim):
1 – Por quê e como a família
Al-Assad está no poder desde o ano de 1970?
2 – Se certos setores e
grupos, tanto sírios quanto brasileiros, defendem um presidente tão
carismático, popular e cuidador do seu povo, como explicar a situação histórica
dos imigrantes e, principalmente, dos refugiados sírios?
Creio que são questões que
devem permear todo esse debate e a reconstrução dos conflitos na Síria, mas
tendo em mente que nunca chegaremos à Verdade Absoluta de nada, ainda mais com
a História, essa ciência que, como diria o historiador francês Pierre Nora, é
uma “reconstrução sempre problemática e incompleta daquilo que não é mais”.
Nessa perspectiva, não
podemos reduzir os acontecimentos históricos e, principalmente, os conflito militares
atuais, a campos com dois polos, com “vilões” de um lado e “mocinhos” do outro.
As alianças internas e externas no contexto da Guerra na Síria também não são
formadas por questão de amizades e simpatias, mas por interesses. Por exemplo,
além de buscar maior protagonismo no cenário geopolítico mundial, a Rússia
apoia o regime Al-Assad porque sua única base militar no Mediterrâneo, a Base
Tartus, está no litoral sírio. A construção dessa base teve seus princípios no
contexto da Guerra dos Seis Dias de 1967, quando a então União Soviética (URSS)
deu apoio tático e militar à Síria contra seu inimigo na ocasião, o Estado de
Israel.
Espero, com este relato, ter
contribuído para um maior entendimento sobre o evento da Guerra na Síria
(2011-) e também para a ideia de estudos históricos mais aprofundados que abordem
as complexidades dos interesses e das relações geopolíticas.
As
samalu alaikum!
Referências
BRANCOLI,
Fernando. O conflito na Síria e a geopolítica no Oriente Médio. In: Chutando a Escada 017 (podcast).
Disponível
em: http://www.chutandoaescada.com.br/2017/09/08/chute-017-o-conflito-na-siria-e-geopolitica-no-oriente-medio-com-fernando-brancoli/
Acesso
em 17/05/18.
CLEMESHA,
Arlene. Arlene Clemesha – Pânico. In: Pânico
Jovem Pan, 30/09/15 (YouTube).
Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=d_fU00Lkgj4
Acesso
em: 16/05/18.
KARNAL,
Leandro. A Síria é quase que uma advertência para o mundo. In: Rádio Bandeirantes, 07/04/17 (YouTube).
Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=WvDuqhcfB7M
Acesso em: 15/05/18.
VASCONCELOS, Yuri. A
humanidade sob os escombros. Guia do Estudante Atualidades, edição
25, 1º semestre de 2017. São Paulo: Abril, 2017, p. 46-53.