terça-feira, 7 de março de 2017

#Texto 3 - Islã e Muçulmanos II - O Califado Ortodoxo (632-661)

Por Thiago Damasceno P. Milhomem
(Mestrando em História
pela Universidade Federal de Goiás)

Revisão textual:
Priscila Vieira

Revisão religiosa:
Imam ᶜAbdu amad Abu Yahia



“Ó, homens, se adorais a Muḥammad, Muḥammad está morto; se adorais a Deus, Deus está vivo”. Segundo um relato tradicional sunnita, assim disse Abū Bakr após a morte do Profeta Muḥammad, fundador do Islã e líder do Estado de Medina. Na época de sua morte, a Umma, a comunidade muçulmana, ficou abalada, pois o cargo de líder da comunidade ficou vazio. O cargo passou então às mãos dos califas.  Abū Bakr foi um antigo companheiro do Profeta e o primeiro califa do Islã, o primeiro de muitos homens que lideraram a expansão árabe-islâmica para além da Península Arábica. 

Vamos falar hoje sobre o Califado Ortodoxo ou Rāchidūn, conhecido na historiografia árabe como “Califado Corretamente Guiado” ou “Califado Bem Encaminhado”, isso para a vertente sunnita do Islã. Lembrando que aqui vamos introduzir a história do Islã passo a passo, um pouco de tudo em cada texto. 

Pois bem... Após a morte do Profeta Muḥammad, houve um período de crise ocasionado pelo vazio na sucessão ao cargo de chefe do Estado de Medina. Há fontes que dizem que o próprio Profeta, antes de falecer, deixou a chefia da comunidade a Abū Bakr, seu sogro e antigo companheiro. Outras fontes dizem que o Profeta faleceu sem nomear um sucessor, e um círculo de fiéis próximo a ele elegeu Abū Bakr como califa. Esse termo designa o sucessor do Profeta para liderar a comunidade. Abū Bakr foi soberano de 632 a 634 e iniciou o tradicionalmente conhecido Califado Ortodoxo, que vigorou até 661, ou seja, por 29 anos. Depois desse califado, vieram outros dois, o omíada e o abássida. Sobre eles falaremos no próximo texto. 

O Califado Ortodoxo contou com outros califas que sucederam Abū Bakr, que foram ᶜUmār (que governou de 634 a 644), ᶜUtmān (de 644 a 656) e ᶜAlī (soberano de 656 a 661). Nesse período, o Império Islâmico – assim pode ser chamado a partir do califado de ᶜUmār – se expandiu pelo Oriente Médio e norte da África. Marcado por conflitos políticos internos, esse califado chegou ao fim, levando ao poder a família omíada no ano de 661. Antes de continuar, vamos entender mais sobre o termo “califa”. Eu já disse que o termo faz menção aos “sucessores do Profeta”, mas há mais a se falar sobre isso.

O equivalente técnico para o termo era “Imām Supremo” e o equivalente honorífico era “Príncipe dos Crentes”. Os califas não eram considerados profetas, mensageiros divinos ou porta-vozes de revelações. Como dito na aula anterior, religiosamente, a última mensagem divina foi expressa à humanidade por meio do Profeta Muḥammad. Embora ainda mantivessem uma aura de santidade e escolha divina, a autoridade dos califas era política. O termo, pronunciado em árabe clássico é khalifa, que significa “sucessor”. Sim, eu pronunciei o “kha” arranhado na garganta, pois é assim a pronúncia no árabe clássico. Por questões de transliteração para outros idiomas, se convencionou aqui no Ocidente a pronúncia com “ca”, “califa”. Por questão de respeito, os muçulmanos sunnitas dizem “Que Deus esteja satisfeito com eles” ao mencionarem o Califado Ortodoxo ou o nome de algum dos califas.

A propósito, para transcrever termos árabes para a nossa língua, utilizo o sistema de transliteração adotado na obra Tradução do Sentido do Nobre Alcorão, do Doutor Helmi Nasr, professor de Estudos Árabes e Islâmicos na Universidade de São Paulo, publicada pelo Complexo de Impressão do Rei Fahd, da Arábia Saudita, em Medina, em 2005.

Voltando aos califas ortodoxos...

Para os muçulmanos sunnitas, o período do Califado Ortodoxo foi uma verdadeira Idade do Ouro onde floresceram as genuínas virtudes do Islã. Porém, historicamente, a Idade do Ouro do Islã aconteceria mais tarde durante o apogeu do califado abássida, cuja soberania foi de 750 a 1258.

Os quatro califas ortodoxos eram próximos ao Profeta Muḥammad por laços sanguíneos e matrimoniais. Abū Bakr e ᶜUmār eram sogros do Profeta, ᶜUtmān era seu genro e ᶜAlī era seu primo e genro. Os quatro basearam seus regimes no Alcorão e no comportamento do Profeta, ou seja, no que o Profeta havia feito e dito em diversas ocasiões. Por meio de acordos econômicos, pregações religiosas e conflitos militares, o Islã, enquanto entidade política e religiosa, no período do califado ortodoxo, se expandiu pelo Oriente Médio - abarcando a Palestina, a Síria, o Iraque e o Irã - e pelo norte da África, abarcando os litorais do Egito e da Líbia.



A capital desse Império Islâmico ainda era a cidade de Medina. Muitos confundem pensando que era Meca, mas Meca era e a inda é “apenas” a principal cidade santa do Islã. E sim, já podemos falar de um Império Islâmico fundado pelos árabes, que se expandiu levando sua política, religião e língua. Na história humana, a expansão islâmica foi algo rápido, eficiente, avassalador, realmente memorável. Em alguns anos o centro da vida política e cultural no Oriente saiu das terras do Império Bizantino e do Império Sassânida para Meca e Medina. Para explicar o porquê disso, devemos nos lembrar do contexto do Oriente Médio e do Mundo Mediterrâneo no começo da Idade Média, contexto esse apresentado na aula anterior.

Primeiramente, é importante mencionar que registros arqueológicos indicam que o mundo Mediterrâneo, ou seja, as terras em torno do mar Mediterrâneo, estavam em declínio devido às invasões dos povos bárbaros ou germânicos, ao enfraquecimento do mercado urbano e à não-manutenção dos terraços e obras agrícolas. E não só o mundo Mediterrâneo enfraquecia, mas também os impérios bizantino e sassânida devido a epidemias de pestes e longos anos de guerras entre si. Nesse mundo em declínio, os árabes-muçulmanos conquistadores não eram uma horda tribal desorganizada e inexperiente, mas uma força organizada. Antes do advento do Islã havia unidades políticas árabes que entraram em acordo tanto com o Império Bizantino quanto com o Sassânida, e essas unidades políticas eram responsáveis por proteger as fronteiras desses impérios. Isso deu a muitos árabes experiência política e militar. E em termos táticos, o camelo, animal de montaria típico dos árabes, era mais vantajoso que o cavalo em campanhas militares travadas em grandes áreas. Isso tudo, além do fervor de convicção dos árabes - ou seja, a mentalidade de estar fazendo algo certo, que era a vontade de Deus - deu a eles um tipo diferente de força, como diz o historiador Albert Hourani.

Além disso, devemos ver também a relação entre os conquistadores árabes-muçulmanos e as populações conquistadas. Surge daí a questão: como o Islã lidou com pessoas de outras crenças? Começo mencionando que os muçulmanos baseiam seu comportamento não só no comportamento do Profeta, mas também no Alcorão, o livro sagrado do Islã, do qual falaremos mais daqui a pouco. O início do capítulo 02, versículo 256 do Alcorão, diz: “Não há compulsão na religião!”. Ou seja, um muçulmano não pode forçar ninguém a se converter, logo, é recomendada a tolerância, principalmente com o chamado “Povo do Livro”, que são os judeus e os cristãos, fiéis que também se baseiam em escrituras consideradas sagradas e reveladas.

Sendo assim, os califas muçulmanos toleraram em seus domínios membros de outras crenças a partir do estabelecimento de acordos. Tais acordos estipulavam o pagamento de impostos, garantindo aos não-muçulmanos em território islâmico proteção e autonomia em seus assuntos desde que nesses assuntos não estivessem incluídos muçulmanos, caso contrário, a lei islâmica deveria julgar os episódios.

O versículo 29 do capítulo 09 ordena a cobrança do al- jizyah especificadamente aos judeus e cristãos, o Povo do Livro. O valor da al-jizyah variava entre 12 e 48 dracmas por pessoa. Esse valor era usado para o orçamento do Estado e para proteger seus pagantes de qualquer ameaça. As maiores relações de tolerância e coexistência religiosa foram observadas na Espanha medieval, mas sobre isso teremos um texto específico.

Albert Hourani afirma que as populações conquistadas pelos árabes-muçulmanos não se importavam muito, no geral, com quem os governava - se fossem gregos, iranianos ou árabes - desde que tivessem segurança, paz e impostos razoáveis. E foi exatamente isso que, majoritariamente, os conquistadores árabes-muçulmanos levaram inspirados na mensagem de justiça social do Alcorão.  Além disso, de início os impostos dos novos conquistadores árabes eram menores do que os antigos soberanos bizantinos e sassânidas, favorecendo ainda mais a população a aceitar o novo regime islâmico.

Segundo Tamara Sonn, o Islã não forçava a conversão, mas o sistema de cobrança de impostos a mais para muçulmanos estimulava econômica e socialmente a conversão. Fora isso, como já falei, havia a mensagem de justiça social do Alcorão, preocupada com a igualdade entre os homens e a redução da pobreza e das desigualdades sociais. E agora é chegada a hora de falarmos do livro sagrado dos muçulmanos, o famoso Alcorão.  

Como abordamos no texto anterior, a tradição religiosa considera que a palavra, o discurso de Deus foi revelada em árabe ao Profeta Muḥammad durante um período de 23 anos, período esse em que ele ditou o conteúdo e o estilo da Revelação para seus companheiros. Além de registrarem na memória, registravam em pedras, omoplatas de camelo, couro de animais e papiros. Segundo Josep Puig Montada, em 633, após a Batalha de Yamāma, Abū Bakr recomendou a compilação escrita do Alcorão, tarefa que seus sucessores ᶜUmār e  ᶜUtmān continuaram. No califado de ᶜUtmān, de 644 a 656, a compilação do Alcorão foi concluída, estabelecendo assim a versão canônica atual.

O termo “Alcorão” vem do árabe al-qur`ān, que significa “A Leitura” ou “A Recitação”, fazendo menção à forma de sua revelação ao Profeta, segundo a religião. O Alcorão é a principal fonte para a lei islâmica, sendo composto por princípios que regulam a vida desde o aspecto privado ao social, mas como contém princípios compilados em um espaço e em um período específico, o livro sagrado precisa ser interpretado e analisado tendo em conta essa noção de contextualização da mensagem e segundo alguns critérios e com obras legais complementares, que surgiram posteriormente durante a expansão islâmica.

E como eu disse no texto anterior, o Islã aceita partes das consideradas revelações divinas anteriores a outros povos, como judeus e cristãos. Tanto que 1/3 das histórias narradas no Alcorão serem encontradas na Bíblia.

O Alcorão registra a língua árabe em sua forma clássica, chamada de fuṣḥa. Fazendo uma comparação por alto, registra a língua em sua forma clássica tal como a obra Os Lusíadas, de Camões, registra o português em sua forma clássica, sendo um marco da língua portuguesa. O árabe clássico deu origem ao árabe literário moderno e ao árabe literário moderno falado ou árabe coloquial, chamado de amia. O árabe clássico não é muito falado no cotidiano dos países árabes, mas é o árabe dos contextos religiosos e eruditos. Segundo o estudioso Josep Puig Montada, o árabe clássico é bastante semelhante ao árabe falado pelos beduínos antes do surgimento do Islã, tanto que ele e Albert Hourani concordam que os gramáticos árabes, no século IX, recorreram a beduínos para tratar sobre dúvidas e disputas em relação à língua.

O estilo de escrita do Alcorão, bem como sua proclamação, recitada, praticamente cantada, também tem suas relações com a poesia árabe pré-islâmica, mas isso requer um estudo à parte. O importante é lembrar que, junto à religião, a língua árabe, considerada para o Islã como a língua escolhida por Deus para a Revelação, se difundiu, tornando-se uma das grandes características culturais do chamado mundo árabe-islâmico ou apenas mundo islâmico.

No período medieval, os convertidos de origem não árabe liam o Alcorão em árabe, isso, obviamente, incentivou a propagação do idioma. Para Albert Hourani, em certos lugares o árabe se expandiu antes mesmo do advento do Islã, por meio de tribos nômades, como no interior da Síria e no oeste do Iraque, onde grande parcela da população já falava árabe no contexto da conquista muçulmana. Mas, para Josep Puig Montada, tais populações não foram significativas para a expansão do idioma árabe. Conforme esse autor, essas tribos árabes assentadas nos desertos sírios e egípcios representaram pouco para a consolidação da língua.

Já vemos aqui dois sentidos para o termo árabe: aquele indivíduo originário da Península Arábica, ou aquele indivíduo que fala árabe. Lembrando que “árabe” e “muçulmano” não são sinônimos. Por ter surgido no Oriente Médio, o Islã tem forte relação com a cultura árabe, e muitos árabes são muçulmanos, mas o Islã se expandiu mais do que a cultura árabe, tanto que a geografia de alcance da cultura islâmica é bem maior do que o mundo árabe, vamos comparar os mapas.





Os quatro países com maior número de muçulmanos, por exemplo, não são de cultura predominantemente árabe. Esses países são, em ordem decrescente de número de muçulmanos: Indonésia, Paquistão, Índia e Bangladesh.

De todo modo, quanto mais fiéis o islã conseguia, mais usuários do árabe surgiam. De início não houve tal adesão expressiva, pois a língua árabe era desconhecida para a maioria da população conquistada. Nos primeiros tempos de expansão do Islã, o árabe não era predominante na administração e na vida cotidiana. Herdando populações e estruturas dos impérios bizantino e sassânida, as primeiras administrações árabes utilizavam também as línguas desses impérios, como o latim, o grego, o copta e o persa. A conquista árabe, além de levar sua língua como toda expansão imperial, também incluiu repovoamento, levando uma massa crítica arabófona – falante de árabe - de uma superpovoada Península Arábica para outras regiões, permitindo que aos poucos o árabe substituísse o grego e as línguas locais.

Os califas ortodoxos criaram a base de uma administração civil, mas com o tempo seus regimes não puderam resolver os problemas que surgiam em uma sociedade em expansão. O Islã enquanto sistema legal ainda não estava consolidado e, na prática, os califas ortodoxos eram mais vistos como árbitros e conselheiros do que como soberanos, tendo poder para estabelecer decisões. Governadores na Síria e no Iraque tentavam se tornar cada vez mais independentes do governo de Medina. Além disso, havia os conflitos internos que deram origem a maior separação religiosa e política entre a comunidade, influenciado no futuro surgimento do sunnismo e do xiismo, como veremos adiante em outras aulas. Logo, conclui-se que o Califado Ortodoxo também foi marcado por guerra civil.

Por enquanto, precisamos saber que os conflitos internos se davam na questão da sucessão do cargo de califa e nas escolhas arbitrárias de alguns califas ortodoxos para essas sucessões. Foram palco desses conflitos as cidades-acampamentos, que eram os acampamentos militares estabelecidos em terras conquistadas que deram origens a núcleos urbanos e futuras cidades, como Basra e Kufa no Iraque e Cairo no Egito.

A disputa pelo poder levou ao assassinato de ᶜUmār por motivos de vingança pessoal e ao assassinato de ᶜUtmān em um movimento de revolta em Medina apoiado por soldados do Egito. O pretendente à sucessão de ᶜUtmān foi ᶜAlī Ibn Abi Talib, convertido antigo, primo do Profeta e esposo de Fátima, filha do Profeta. Contra ᶜAlī estavam os parentes de ᶜUtmān. Estes se concentraram na cidade-acampamento de Basra e ᶜAlī e seus apoiadores se estabelecerem em Kufa. ᶜAlī derrotou seus opositores, mas se viu diante de Muaᶜawiya, da dinastia omíada, parente próximo de ᶜUtmān e governador da Síria. Após se enfrentarem, as duas forças concordaram com uma arbitragem, uma trégua, tendo delegados dos dois lados. Devido a isso, alguns seguidores de ᶜAlī o abandonaram e seu poder enfraqueceu. Para esses seguidores, a trégua submeteu a vontade de Deus à vontade humana. Nos meses seguintes ᶜAlī acabou sendo assassinado em sua própria cidade, Kufa. Então Muaᶜawiya se proclamou califa, dando origem à dinastia omíada, que governou o Império Islâmico de 661 a 750 e sobre a qual faremos um estudo no próximo texto. 

Até logo e que a paz esteja com todos! 

REFERÊNCIAS

ALCORÃO NOBRE. Tradução do sentido para a língua portuguesa por Helmi NASR.            Al-Madinah: Complexo do Rei Fahd, 2005. 

HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das                    Letras, 2ª edição, 9ª reimpressão, 1994.

MONTADA, Josep Puig. A língua árabe. In: PEREIRA, Rosalie Helena de Souza                 (org.). O Islã Clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007. p.                51-67.

SALGADO, Felipe Maíllo. Diccionario de Historia Árabe & Islámica. Madrid: Abada                Editores, 2013.


SONN, Tamara. Uma Breve História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

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