sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

#Texto 2 - Islã e Muçulmanos I - O Surgimento do Islã (610-632)

Por Thiago Damasceno P. Milhomem
(Mestrando em História
pela Universidade Federal de Goiás)

Revisão textual:
Priscila Vieira

Revisão religiosa:
Imam ᶜAbdu amad Abu Yahia


“Em nome de Deus, o Misericordioso, o Misericordiador”, ou em árabe: bismillahi ar-raḥ meni ar-raḥimi. Assim começa qualquer texto de autoria de um muçulmano ou de uma muçulmana. E, com exceção de um dos 114 capítulos do Alcorão, todos os capítulos do livro sagrado dos muçulmanos também começam com essa sentença. Os termos “muçulmano” e “muçulmana” vêm do árabe “muslim”, que significa “submisso” e “submissa”. Na visão religiosa, submissos a Deus. Escrevi pouco até agora, mas já podemos fazer muitas perguntas: Qual a relação entre Islã ou islamismo e os árabes? Quem é esse Deus a quem chamam de Allah? O que é o Alcorão? E afinal de contas, o que é o Islã e onde e quando ele surgiu?

As respostas a essas perguntas são grandes, por isso começo agora uma série de aulas introdutórias sobre a história do Islã. Os principais estudiosos que utilizo para isso são Jamil Almansur Haddad, autor de O Que é Islamismo, Albert Hourani, autor de Uma História dos Povos Árabes; Tamara Sonn, autora de Uma Breve História do Islã; e Felipe Maíllo Salgado, autor de Diccionario de Historia Árabe e Islámica. Esses quatro autores basearam-se tanto em fontes árabes quanto em fontes não árabes. Nossa meta: compreender mais a história dos árabes e dos muçulmanos. Assim, além de conhecer a história de uma importante civilização, vamos combater muitos preconceitos e estereótipos que associam a cultura árabe e o Islã à violência e à ignorância. Vamos transitar dos quentes desertos da Península Arábica até os luxuosos palácios com fontes de água fresca na Espanha medieval. Então, bem vindos a essa viagem histórica e cultural, ou em árabe: ahlan wasahlan.

O Advento do Islã

Introdução

          Antes de tudo quero agradecer a todos pelas visualizações, comentários e curtidas! Tudo isso nos empolga cada vez mais a continuar com esse trabalho. A Internet facilita muito nossa interação com informações e conhecimentos e, no caso de vídeo-aulas, precisamos muito mais da interação com o público, por isso é importante vocês continuarem mandando comentários, crítica e sugestões ao canal, tanto pelo YouTube quanto pela página no Facebook.

 Nesta Aula I, abordaremos o início da história islâmica, no século VII, época da fundação do islã como religião e como Estado, ou seja, como uma organização territorial e política que lançou as bases de uma das mais sofisticadas civilizações do período medieval, contrariando assim a ideia de que religião é sinônimo de regresso. A história nos mostra que nem sempre é assim.


          O Islã surgiu no que se convencionou chamar de porção oriental do mundo, na Península Arábica, do Oriente Médio, no século VII d.C. Seu fundador, como conhecemos hoje, foi Muḥammad Ibn ᶜAbdullāh, reconhecido pela tradição religiosa como “O Profeta”. Vale ressaltar que muçulmanos não adoram Muḥammad, mas Deus, cujo termo em árabe é Allah. Por isso, não é apropriado denominar muçulmanos e muçulmanas de “maometanos” ou “maometanas”. 

Península Arábica. Google Maps

A Península Arábica tem clima predominantemente árido e seu relevo é composto predominantemente por desertos, fatores naturais que influenciaram no modo de vida dos seus habitantes. A organização dos povos árabes era tribal. Os laços entre homens e mulheres se davam por meio da família, do clã e da tribo. Viviam como nômades, os chamados beduínos, transitando pelos desertos criando e vendendo animais; e também viviam como sedentários, plantando nos oásis. Algumas tribos também misturavam os modos de vida nômade e sedentário. Havia também feiras e cidades com seus comerciantes e artesãos. Alianças militares e comerciais eram feitas entre as tribos. A religião tradicional era politeísta. Os árabes adoravam vários deuses e acreditavam que seres sobrenaturais se escondiam em cavernas, pedras, árvores. Além disso, adivinhos enxergavam o futuro. Os muçulmanos árabes atuais chamam essa época politeísta, pré-islâmica, de jahiliah, “época da ignorância, da barbárie”.

Os árabes tinham um modo de vida dinâmico e complexo, dividido em tribos, sem união política, ao menos até meados do século VII. Agora, antes de prosseguir, precisamos visualizar a Península Arábica – ou Arábia - como parte de um mundo maior.

Contexto Histórico do Surgimento do Islã

A Arábia tinha em sua vizinhança o império Bizantino, ou Império Romano do Oriente, e o Império Sassânida, onde hoje é o Irã. Esses dois impérios eram os principais centros de cultura e poder na região do Mundo Mediterrâneo e do Oriente Médio. Também eram próximas à península duas sociedades com organização política e cultural, mas menos expressivas que os dois impérios. Eram o reino da Etiópia, no continente africano, e o reino do Iêmen, no sudoeste da Península Arábica. A proximidade geográfica e certas necessidades sociais proporcionavam trocas comerciais e culturais entre os árabes e os habitantes dos outros Estados e com crentes de importantes religiões monoteístas, como o judaísmo e o cristianismo. Havia inclusive comunidades judaicas e cristãs vivendo na Arábia antes do advento do islã.

          É importante mencionar o constante contato comercial e cultural entre diversos povos desde a antiguidade. O estudioso Mohammed Bamyeh defende que o mundo não europeu da Antiguidade até o século XVI era multicultural, e povos de diferentes culturas se conectavam por meio de rotas comerciais, como a famosa Rota da Seda. Vejamos no mapa. 

A Rota da Seda.
SONN, Tamara. Uma Breve História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, pp. 110.

A Rota da Seda era a antiga rota aberta nos tempos dos gregos e romanos, ligando regiões do Oriente Médio até a China. Ia do mar Mediterrâneo até a Grande Muralha, atravessando a Síria, a Pérsia, o Afeganistão, o Paquistão, a Índia e a Ásia central. Ao longo desse caminho, viajantes, peregrinos e comerciantes enfrentavam desertos e montanhas traiçoeiras, um calor abrasador e temperaturas abaixo de zero, e bandidos de todo tipo. No entanto, o comércio ao longo dessa rota prosperou até que viagens marítimas se desenvolvessem a ponto de serem mais eficientes para grandes distâncias tanto por mar quanto por terra.

O estudioso Mohammed Bamyeh vai ainda mais longe e diz que o multiculturalismo de hoje não nasceu com a Europa e suas grandes navegações, e nem é fruto da globalização. Ele afirma que o que temos hoje é um resurgimento do antigo multiculturalismo do mundo, multiculturalismo esse com o qual a Europa nunca soube lidar. Neste mundo multicultural que Bamyeh fala, nasceu o Islã.

O islã, entidade religiosa, surgiu no ano 610 cristão com as pregações do até então mercador Muḥammad Ibn ᶜAbdullāh, da cidade de Meca, mais conhecido aqui no Brasil como “Maomé”. Por considerar existir certo racismo nesse termo, usarei o nome original em árabe. Afinal de contas, quando se tem um nome estrangeiro, geralmente ele é falado em sua língua nativa, por que não fazer o mesmo com um nome em árabe?

A seguir, algumas imagens do Profeta, mas informo de antemão que a temática é complexa e muito discutida. 

Imagem 01: Profeta Muḥammad




Imagem 02: Profeta Muḥammad e o Arcanjo Gabriel

Já no início do século VII, Meca era um importante centro religioso e comercial, reunindo estátuas de muitos deuses no seu principal templo, a Kaaba. A esse templo eram feitas peregrinações, que contribuíam com o comércio de Meca, fortalecendo ainda mais o poder das principais famílias da tribo coraixita, que dominavam Meca.

Há estudiosos que dizem que os árabes já adoravam a um deus que chamavam de Hubal, ou de Allah, palavra árabe para “deus”. Essa hipótese pode ser verdadeira por 3 argumentos:

1 - Devido à influência das ideias de judeus e cristãos na Península Arábica;
2 - pelo fato de que os árabes não estranharam um homem como Muḥammad pregando sobre um deus chamado Allah. Por certo tempo, ele foi visto apenas como mais um profeta pregador entre tantos outros. Os árabes estranharam mais o fato de Muhammad defender o deus Allah como único deus existente, aproximando sua mensagem do judaísmo e do cristianismo, e não do politeísmo;
3 - fontes islâmicas afirmam que os árabes tinham como divindade principal Allah. O politeísmo se dava por acreditarem em intercessores, que eram entidades sobrenaturais com poder de interceder entre Deus e os homens.

 Mas, em suma, quem foi Muḥammad?

Por ele os muçulmanos têm grande respeito, chegando a basear seus comportamentos, vestimentas e crenças à conduta dele. Ao mencionar o nome do Profeta, os muçulmanos proclamam Salallahu aleihi wa Salam, que pode ser traduzido como “Que a Paz de Deus esteja com ele”.

Muḥammad é chamado de “O Profeta” porque, para o Islã, ele é o último de uma linhagem de mensageiros enviados por Deus para dar a Sua mensagem divina à humanidade. E que mensagem é essa? Que só há um Deus criador e onipotente, que julgará a todos pelos seus atos no Dia do Juízo Final.

O Islã tem uma visão desenvolvimentista e não desconsidera mensagens anteriores, como as presentes no Antigo e no Novo Testamento, mas se considera mais sofisticado e sem certos desvios que judeus e cristãos acabaram seguindo. Portanto, apesar de afirmar haver certos desvios, o Islã respeita os escritos sagrados dos judeus e dos cristãos. Para o Islã, o primeiro profeta foi Adão, e o último, Muḥammad. Antes desse, veio o profeta Jesus Cristo, nascido de uma virgem e realizador de milagres, mas não um filho de Deus, tampouco alguém que morreu numa cruz. Aí estão as principais divergências entre cristianismo e islamismo sobre a natureza de Cristo.

É difícil falar de Muḥammad em termos históricos e científicos. Mas ele existiu e, diferente de muitos outros líderes religiosos, colheu os frutos sociais e políticos da religião que fundou ainda em vida. A dificuldade em falar sobre a vida do Profeta pode ser vista em dois fenômenos: o primeiro é que as fontes árabes que narram sua vida e a formação da comunidade em torno dele são de épocas posteriores a ele e baseiam-se muito em testemunhos orais transmitidos de geração a geração, gerando várias questões no campo da memória. A segunda dificuldade é separar o homem histórico do homem santo, pois muitos textos tentam enquadrá-lo em um modelo ou padrão, o modelo oriental de homem santo de descendência nobre.

Mesmo com essas dificuldades, inerentes a uma pesquisa historiográfica atual, podemos sim falar de um homem fundador de uma religião e de um Estado que se expandiu pelo mundo conhecido na época, um mundo com pessoas que buscavam um sentido para a vida e a maneira correta de vivê-la. Mas não podemos nos esquecer do contexto de vida desse homem, contexto esse já apresentado aqui. No mais, fontes não árabes dos séculos medievais também atestam sobre um império formado pelos árabes.

Feitas essas considerações, continuemos.

Muḥammad nasceu por volta de 570 d.C. em Meca. Sua família pertencia ao ramo Banu Hashin da tribo coraixita, mas não ao ramo mais forte. Os membros da tribo coraixita eram normalmente mercadores. Ele perdeu os pais ainda muito jovem. O pai,  ᶜAbdullāh, faleceu dois meses antes do seu nascimento. A mãe, Amina, faleceu quando ele tinha 6 seis anos. Muḥammad foi então criado pelo seu tio Abu Talib. Casou-se com Kadija, uma viúva comerciante, e cuidou de seus negócios.

Segundo um relato, em uma de suas viagens à Síria, um monge cristão chamado Bahira viu o selo, um sinal da profecia, entre seus ombros. Segundo a tradição, objetos naturais como pedras e árvores também o saudavam. Muḥammad tinha o hábito de ir para o deserto, meditar entre rochas e cavernas, até que um dia, quando tinha 40 anos, teve o encontro com o sobrenatural. Esse episódio é conhecido religiosamente como a Noite do Poder ou a Noite do Destino. Naquela noite, o Arcanjo Gabriel lhe entregou a mensagem de Deus, dizendo-lhe “Recita”. Mesmo analfabeto, Muḥammad assim o fez. Era o início da Revelação divina que duraria 23 anos e seria registrada por escrito no Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos.

Temos até aqui uma breve apresentação da vida de Muḥammad reunindo relatos religiosos e históricos. O sobrenatural que envolve a história de pessoas consideradas santas é normal. Só é considerado errado ou mentiroso quando o santo é um Outro. Explico melhor: certos relatos cristãos medievais divulgam um Muḥammad louco, epilético, mentiroso, falso profeta, estuprador, ladrão e sanguinário. Normal: o Outro era geralmente mal visto. Um cristão medieval que concordasse com os relatos santos sobre Muḥammad estaria legitimando o Islã e denegrindo o cristianismo. O problema é que certas visões exageradamente pejorativas sobre o fundador do Islã existem até hoje, contribuindo para o crescimento de intolerância religiosa. Concordando ou não com os relatos religiosos sobre Muḥammad, é importante saber que para muçulmanos esses relatos são reais e, por envolver crenças de outras pessoas, merecem respeito.

Para a visão islâmica, Muḥammad recebia a Revelação divina em qualquer momento e tranquilamente, sem entrar numa espécie de “transe louco”. Ele então comunicava a mensagem divina para seus Companheiros. Assim foi se formando o Alcorão, mas, sobre o livro, falaremos mais na próxima aula.

Pregando em Meca, obviamente Muḥammad foi perseguido pelas principais famílias coraixitas, sofrendo agressões verbais e físicas e até risco de morte.  Negociar com sua esposa Kadija passou a ser evitado. Em setembro de 622, Muḥammad buscou refúgio na cidade Yatrib, que fica 30 km ao norte de Meca. Futuramente essa cidade seria batizada de Madinat al-Nabi, a “Cidade do Profeta”.

Yatrib tinha tribos de árabes politeístas e de judeus, e precisava de um árbitro para suas disputas. O episódio da ida de Muḥammad para lá ficou conhecido como Hégira e marcou o início do calendário lunar islâmico. O termo Hégira, do árabe hijra, pode ser traduzido como “emigração”, e não tem apenas o sentido de fuga, mas de busca de refúgio em um lugar alheio, diferente.

Em Yatrib, Muḥammad se tornou árbitro das disputas tribais e fundou um Estado que tinha o islã como religião oficial, mas que abarcava outras etnias além da árabe, e outras religiões, como os judeus e o judaísmo. Esse Estado ficou conhecido como Estado de Medina.

Após anos de pregações religiosas, acordos de diversos tipos e batalhas militares, Muḥammad conquistou Meca em 630, fortalecendo seu Estado. O Profeta faleceu dois anos depois, mas já havia unificado política e religiosamente as diversas tribos árabes. E esse foi seu grande feito para a história. Em 632, ano de sua morte, todas as tribos viviam sob a soberania política e religiosa do Islã.

          O Profeta foi enterrado em Medina, cidade que, junto a Meca e Jerusalém, compõe o trio das cidades santas do Islã. Usamos tanto o termo “islã”, mas o que ele significa?

          Islam em árabe pode ser entendido como “submisso a Deus”. A palavra “islam” vem do termo “salam”, que significa “paz”. Mas o conceito oriental de “paz” vai além do nosso ocidental de “ausência de guerra”. “Paz” em árabe inclui união entre corpo e alma, poder e território, enfim, tem um significado de unificação, de união, de junção em diversos aspectos. Por isso os valores islâmicos são aconselhados tanto na vida pessoal dos seus fiéis quanto na vida pública e política. O islã, enquanto conjunto de preceitos de vida, deve ter seus valores presentes na vida do fiel em todos os campos. Para os muçulmanos, o Islã não é apenas uma religião, mas um dīn, um modo de vida.  Esse fiel, o muçulmano, do árabe muslim, “submisso a Deus e à sua vontade”, compõe hoje, segundo instituições islâmicas, um coletivo de mais de 1 bilhão e meio de fiéis no mundo todo, e mais de 1 milhão e 300 mil aqui no Brasil. Desse todo, o número de terroristas é uma minoria, uma porcentagem de 0,19%, conforme pesquisas acadêmicas, não podendo essa porcentagem, desse modo, ser considerada representante do Islã e dos muçulmanos.

          Voltando à nossa história...

          A morte de Muḥammad gerou uma nova fase na vida política e social da Umma, a comunidade muçulmana. A partir de 632, a comunidade foi governada pelos califas, considerados politicamente os “sucessores do Profeta”. Com os califas, o Islã se expandiu para além da Península Arábica. E sobre isso, falaremos na próxima aula.  
         
Referências

Livros e Artigos

BAMYEH, Mohammed A. Árabes e Europeus: Duas Lógicas Antagônicas de Descoberta. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 38, dezembro de 1993, pp. 87-103. Disponível em: www.ces.uc.pt/rccs/includes/download.php?id=522
HADDAD, Jamil Almansur. O Que é Islamismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª edição, 9ª reimpressão, 1994.
SALGADO, Felipe Maíllo. Diccionario de Historia Árabe & Islámica. Madrid: Abada Editores, 2013.
SONN, Tamara. Uma Breve História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

Mapas e Imagens

Mapa 01: Península Arábica
Google Maps
Mapa 02: A Rota da Seda
SONN, Tamara. Uma Breve História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, pp. 110.
Imagem 01: Profeta Muḥammad
Imagem 02: Profeta Muḥammad e o Arcanjo Gabriel



Curta nossa página no Facebook!
Inscreva-se no nosso canal no YouTube!

Nenhum comentário:

Postar um comentário