Por Thiago Damasceno P.
Milhomem
(Mestrando em História
pela Universidade Federal de Goiás)
Revisão textual:
Priscila Vieira
Revisão religiosa:
Imam ᶜAbdu ṣamad Abu Yahia
“Em nome de Deus, o
Misericordioso, o Misericordiador”, ou em árabe: bismillahi ar-raḥ meni ar-raḥimi. Assim começa qualquer texto de autoria de um muçulmano ou
de uma muçulmana. E, com exceção de um dos 114 capítulos do Alcorão, todos os
capítulos do livro sagrado dos muçulmanos também começam com essa sentença. Os
termos “muçulmano” e “muçulmana” vêm do árabe “muslim”, que significa
“submisso” e “submissa”. Na visão religiosa, submissos a Deus. Escrevi pouco
até agora, mas já podemos fazer muitas perguntas: Qual a relação entre Islã ou
islamismo e os árabes? Quem é esse Deus a quem chamam de Allah? O que é o Alcorão? E afinal de contas, o que é o Islã e onde
e quando ele surgiu?
As respostas a essas
perguntas são grandes, por isso começo agora uma série de aulas introdutórias
sobre a história do Islã. Os principais estudiosos que utilizo para isso são Jamil
Almansur Haddad, autor de O Que é
Islamismo, Albert Hourani, autor de Uma
História dos Povos Árabes; Tamara Sonn, autora de Uma Breve História do Islã; e Felipe Maíllo Salgado, autor de Diccionario de Historia Árabe e Islámica.
Esses quatro autores basearam-se tanto em fontes árabes quanto em fontes não
árabes. Nossa meta: compreender mais a história dos árabes e dos muçulmanos.
Assim, além de conhecer a história de uma importante civilização, vamos
combater muitos preconceitos e estereótipos que associam a cultura árabe e o
Islã à violência e à ignorância. Vamos transitar dos quentes desertos da
Península Arábica até os luxuosos palácios com fontes de água fresca na Espanha
medieval. Então, bem vindos a essa viagem histórica e cultural, ou em árabe: ahlan
wasahlan.
O Advento do Islã
Introdução
Antes
de tudo quero agradecer a todos pelas visualizações, comentários e curtidas!
Tudo isso nos empolga cada vez mais a continuar com esse trabalho. A Internet facilita muito nossa interação
com informações e conhecimentos e, no caso de vídeo-aulas, precisamos muito
mais da interação com o público, por isso é importante vocês continuarem
mandando comentários, crítica e sugestões ao canal, tanto pelo YouTube quanto pela página no Facebook.
Nesta Aula I, abordaremos o início da história
islâmica, no século VII, época da fundação do islã como religião e como Estado,
ou seja, como uma organização territorial e política que lançou as bases de uma
das mais sofisticadas civilizações do período medieval, contrariando assim a
ideia de que religião é sinônimo de regresso. A história nos mostra que nem
sempre é assim.
O
Islã surgiu no que se convencionou chamar de porção oriental do mundo, na
Península Arábica, do Oriente Médio, no século VII d.C. Seu fundador, como
conhecemos hoje, foi Muḥammad Ibn ᶜAbdullāh, reconhecido pela tradição
religiosa como “O Profeta”. Vale ressaltar que muçulmanos não adoram Muḥammad,
mas Deus, cujo termo em árabe é Allah.
Por isso, não é apropriado denominar muçulmanos e muçulmanas de “maometanos” ou
“maometanas”.
Península
Arábica. Google Maps
A Península Arábica tem
clima predominantemente árido e seu relevo é composto predominantemente por
desertos, fatores naturais que influenciaram no modo de vida dos seus habitantes.
A organização dos povos árabes era tribal. Os laços entre homens e mulheres se
davam por meio da família, do clã e da tribo. Viviam como nômades, os chamados
beduínos, transitando pelos desertos criando e vendendo animais; e também
viviam como sedentários, plantando nos oásis. Algumas tribos também misturavam
os modos de vida nômade e sedentário. Havia também feiras e cidades com seus
comerciantes e artesãos. Alianças militares e comerciais eram feitas entre as
tribos. A religião tradicional era politeísta. Os árabes adoravam vários deuses
e acreditavam que seres sobrenaturais se escondiam em cavernas, pedras, árvores.
Além disso, adivinhos enxergavam o futuro. Os muçulmanos árabes atuais chamam
essa época politeísta, pré-islâmica, de jahiliah,
“época da ignorância, da barbárie”.
Os árabes tinham um modo de
vida dinâmico e complexo, dividido em tribos, sem união política, ao menos até
meados do século VII. Agora, antes de prosseguir, precisamos visualizar a
Península Arábica – ou Arábia - como parte de um mundo maior.
Contexto
Histórico do Surgimento do Islã
A Arábia tinha em sua
vizinhança o império Bizantino, ou Império Romano do Oriente, e o Império Sassânida,
onde hoje é o Irã. Esses dois impérios eram os principais centros de cultura e
poder na região do Mundo Mediterrâneo e do Oriente Médio. Também eram próximas
à península duas sociedades com organização política e cultural, mas menos
expressivas que os dois impérios. Eram o reino da Etiópia, no continente
africano, e o reino do Iêmen, no sudoeste da Península Arábica. A proximidade
geográfica e certas necessidades sociais proporcionavam trocas comerciais e
culturais entre os árabes e os habitantes dos outros Estados e com crentes de
importantes religiões monoteístas, como o judaísmo e o cristianismo. Havia
inclusive comunidades judaicas e cristãs vivendo na Arábia antes do advento do
islã.
É
importante mencionar o constante contato comercial e cultural entre diversos
povos desde a antiguidade. O estudioso Mohammed Bamyeh defende que o mundo não
europeu da Antiguidade até o século XVI era multicultural, e povos de
diferentes culturas se conectavam por meio de rotas comerciais, como a famosa
Rota da Seda. Vejamos no mapa.
A
Rota da Seda.
SONN, Tamara. Uma Breve História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011,
pp. 110.
A Rota da Seda era a antiga
rota aberta nos tempos dos gregos e romanos, ligando regiões do Oriente Médio
até a China. Ia do mar Mediterrâneo até a Grande Muralha, atravessando a Síria,
a Pérsia, o Afeganistão, o Paquistão, a Índia e a Ásia central. Ao longo desse
caminho, viajantes, peregrinos e comerciantes enfrentavam desertos e montanhas
traiçoeiras, um calor abrasador e temperaturas abaixo de zero, e bandidos de
todo tipo. No entanto, o comércio ao longo dessa rota prosperou até que viagens
marítimas se desenvolvessem a ponto de serem mais eficientes para grandes
distâncias tanto por mar quanto por terra.
O estudioso Mohammed Bamyeh
vai ainda mais longe e diz que o multiculturalismo de hoje não nasceu com a
Europa e suas grandes navegações, e nem é fruto da globalização. Ele afirma que
o que temos hoje é um resurgimento do antigo multiculturalismo do mundo,
multiculturalismo esse com o qual a Europa nunca soube lidar. Neste mundo
multicultural que Bamyeh fala, nasceu o Islã.
O islã, entidade religiosa,
surgiu no ano 610 cristão com as pregações do até então mercador Muḥammad Ibn ᶜAbdullāh,
da cidade de Meca, mais conhecido aqui no Brasil como “Maomé”. Por considerar
existir certo racismo nesse termo, usarei o nome original em árabe. Afinal de
contas, quando se tem um nome estrangeiro, geralmente ele é falado em sua
língua nativa, por que não fazer o mesmo com um nome em árabe?
A seguir, algumas imagens do
Profeta, mas informo de antemão que a temática é complexa e muito discutida.
Imagem
01:
Profeta Muḥammad
Imagem
02:
Profeta Muḥammad e o Arcanjo Gabriel
Já no início do século VII,
Meca era um importante centro religioso e comercial, reunindo estátuas de
muitos deuses no seu principal templo, a Kaaba. A esse templo eram feitas
peregrinações, que contribuíam com o comércio de Meca, fortalecendo ainda mais
o poder das principais famílias da tribo coraixita, que dominavam Meca.
Há estudiosos que dizem que
os árabes já adoravam a um deus que chamavam de Hubal, ou de Allah, palavra
árabe para “deus”. Essa hipótese pode ser verdadeira por 3 argumentos:
1 - Devido à influência das ideias de judeus
e cristãos na Península Arábica;
2 - pelo fato de que os árabes não
estranharam um homem como Muḥammad pregando sobre um deus chamado Allah. Por
certo tempo, ele foi visto apenas como mais um profeta pregador entre tantos
outros. Os árabes estranharam mais o fato de Muhammad defender o deus Allah
como único deus existente, aproximando sua mensagem do judaísmo e do
cristianismo, e não do politeísmo;
3 - fontes islâmicas afirmam que os árabes
tinham como divindade principal Allah.
O politeísmo se dava por acreditarem em intercessores, que eram entidades
sobrenaturais com poder de interceder entre Deus e os homens.
Mas, em suma, quem foi Muḥammad?
Por ele os muçulmanos têm
grande respeito, chegando a basear seus comportamentos, vestimentas e crenças à
conduta dele. Ao mencionar o nome do Profeta, os muçulmanos proclamam Salallahu aleihi wa Salam, que pode ser
traduzido como “Que a Paz de Deus esteja com ele”.
Muḥammad é chamado de “O
Profeta” porque, para o Islã, ele é o último de uma linhagem de mensageiros
enviados por Deus para dar a Sua mensagem divina à humanidade. E que mensagem é
essa? Que só há um Deus criador e onipotente, que julgará a todos pelos seus
atos no Dia do Juízo Final.
O Islã tem uma visão
desenvolvimentista e não desconsidera mensagens anteriores, como as presentes
no Antigo e no Novo Testamento, mas se considera mais sofisticado e sem certos
desvios que judeus e cristãos acabaram seguindo. Portanto, apesar de afirmar
haver certos desvios, o Islã respeita os escritos sagrados dos judeus e dos
cristãos. Para o Islã, o primeiro profeta foi Adão, e o último, Muḥammad. Antes
desse, veio o profeta Jesus Cristo, nascido de uma virgem e realizador de
milagres, mas não um filho de Deus, tampouco alguém que morreu numa cruz. Aí
estão as principais divergências entre cristianismo e islamismo sobre a
natureza de Cristo.
É difícil falar de Muḥammad
em termos históricos e científicos. Mas ele existiu e, diferente de muitos outros
líderes religiosos, colheu os frutos sociais e políticos da religião que fundou
ainda em vida. A dificuldade em falar sobre a vida do Profeta pode ser vista em
dois fenômenos: o primeiro é que as fontes árabes que narram sua vida e a
formação da comunidade em torno dele são de épocas posteriores a ele e baseiam-se
muito em testemunhos orais transmitidos de geração a geração, gerando várias
questões no campo da memória. A segunda dificuldade é separar o homem histórico
do homem santo, pois muitos textos tentam enquadrá-lo em um modelo ou padrão, o
modelo oriental de homem santo de descendência nobre.
Mesmo com essas
dificuldades, inerentes a uma pesquisa historiográfica atual, podemos sim falar
de um homem fundador de uma religião e de um Estado que se expandiu pelo mundo
conhecido na época, um mundo com pessoas que buscavam um sentido para a vida e
a maneira correta de vivê-la. Mas não podemos nos esquecer do contexto de vida
desse homem, contexto esse já apresentado aqui. No mais, fontes não árabes dos
séculos medievais também atestam sobre um império formado pelos árabes.
Feitas essas considerações,
continuemos.
Muḥammad nasceu por volta de
570 d.C. em Meca. Sua família pertencia ao ramo Banu Hashin da tribo coraixita,
mas não ao ramo mais forte. Os membros da tribo coraixita eram normalmente
mercadores. Ele perdeu os pais ainda muito jovem. O pai, ᶜAbdullāh, faleceu dois meses antes do
seu nascimento. A mãe, Amina, faleceu quando ele tinha 6 seis anos. Muḥammad
foi então criado pelo seu tio Abu Talib. Casou-se com Kadija, uma viúva
comerciante, e cuidou de seus negócios.
Segundo um relato, em uma de
suas viagens à Síria, um monge cristão chamado Bahira viu o selo, um sinal da
profecia, entre seus ombros. Segundo a tradição, objetos naturais como pedras e
árvores também o saudavam. Muḥammad tinha o hábito de ir para o deserto,
meditar entre rochas e cavernas, até que um dia, quando tinha 40 anos, teve o encontro
com o sobrenatural. Esse episódio é conhecido religiosamente como a Noite do
Poder ou a Noite do Destino. Naquela noite, o Arcanjo Gabriel lhe entregou a
mensagem de Deus, dizendo-lhe “Recita”. Mesmo analfabeto, Muḥammad assim o fez.
Era o início da Revelação divina que duraria 23 anos e seria registrada por
escrito no Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos.
Temos até aqui uma breve
apresentação da vida de Muḥammad reunindo relatos religiosos e históricos. O
sobrenatural que envolve a história de pessoas consideradas santas é normal. Só
é considerado errado ou mentiroso quando o santo é um Outro. Explico melhor: certos
relatos cristãos medievais divulgam um Muḥammad louco, epilético, mentiroso,
falso profeta, estuprador, ladrão e sanguinário. Normal: o Outro era geralmente
mal visto. Um cristão medieval que concordasse com os relatos santos sobre Muḥammad
estaria legitimando o Islã e denegrindo o cristianismo. O problema é que certas
visões exageradamente pejorativas sobre o fundador do Islã existem até hoje,
contribuindo para o crescimento de intolerância religiosa. Concordando ou não
com os relatos religiosos sobre Muḥammad, é importante saber que para
muçulmanos esses relatos são reais e, por envolver crenças de outras pessoas,
merecem respeito.
Para a visão islâmica, Muḥammad
recebia a Revelação divina em qualquer momento e tranquilamente, sem entrar
numa espécie de “transe louco”. Ele então comunicava a mensagem divina para
seus Companheiros. Assim foi se formando o Alcorão, mas, sobre o livro,
falaremos mais na próxima aula.
Pregando em Meca, obviamente
Muḥammad foi perseguido pelas principais famílias coraixitas, sofrendo agressões
verbais e físicas e até risco de morte. Negociar
com sua esposa Kadija passou a ser evitado. Em setembro de 622, Muḥammad buscou
refúgio na cidade Yatrib, que fica 30 km ao norte de Meca. Futuramente
essa cidade seria batizada de Madinat
al-Nabi, a “Cidade do Profeta”.
Yatrib tinha tribos
de árabes politeístas e de judeus, e precisava de um árbitro para suas
disputas. O episódio da ida de Muḥammad para lá ficou conhecido como Hégira e
marcou o início do calendário lunar islâmico. O termo Hégira, do árabe hijra, pode ser traduzido como
“emigração”, e não tem apenas o sentido de fuga, mas de busca de refúgio em um
lugar alheio, diferente.
Em Yatrib, Muḥammad
se tornou árbitro das disputas tribais e fundou um Estado que tinha o islã como
religião oficial, mas que abarcava outras etnias além da árabe, e outras
religiões, como os judeus e o judaísmo. Esse Estado ficou conhecido como Estado
de Medina.
Após anos de pregações
religiosas, acordos de diversos tipos e batalhas militares, Muḥammad conquistou
Meca em 630, fortalecendo seu Estado. O Profeta faleceu dois anos depois, mas
já havia unificado política e religiosamente as diversas tribos árabes. E esse
foi seu grande feito para a história. Em 632, ano de sua morte, todas as tribos
viviam sob a soberania política e religiosa do Islã.
O Profeta foi enterrado em Medina, cidade
que, junto a Meca e Jerusalém, compõe o trio das cidades santas do Islã. Usamos
tanto o termo “islã”, mas o que ele significa?
Islam em árabe pode ser entendido como “submisso
a Deus”. A palavra “islam” vem do
termo “salam”, que significa “paz”. Mas
o conceito oriental de “paz” vai além do nosso ocidental de “ausência de
guerra”. “Paz” em árabe inclui união entre corpo e alma, poder e território,
enfim, tem um significado de unificação, de união, de junção em diversos
aspectos. Por isso os valores islâmicos são aconselhados tanto na vida pessoal
dos seus fiéis quanto na vida pública e política. O islã, enquanto conjunto de
preceitos de vida, deve ter seus valores presentes na vida do fiel em todos os
campos. Para os muçulmanos, o Islã não é apenas uma religião, mas um dīn, um modo de vida. Esse fiel, o
muçulmano, do árabe muslim, “submisso
a Deus e à sua vontade”, compõe hoje, segundo instituições islâmicas, um coletivo
de mais de 1 bilhão e meio de fiéis no mundo todo, e mais de 1 milhão e 300 mil
aqui no Brasil. Desse todo, o número de terroristas é uma minoria, uma
porcentagem de 0,19%, conforme pesquisas acadêmicas, não podendo essa
porcentagem, desse modo, ser considerada representante do Islã e dos
muçulmanos.
Voltando
à nossa história...
A
morte de Muḥammad gerou uma nova fase na vida política e social da Umma, a comunidade muçulmana. A partir
de 632, a comunidade foi governada pelos califas, considerados politicamente os
“sucessores do Profeta”. Com os califas, o Islã se expandiu para além da
Península Arábica. E sobre isso, falaremos na próxima aula.
Referências
Livros
e Artigos
HADDAD, Jamil Almansur. O
Que é Islamismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
HOURANI, Albert. Uma
História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª edição, 9ª
reimpressão, 1994.
SALGADO, Felipe Maíllo. Diccionario de Historia
Árabe & Islámica. Madrid: Abada Editores, 2013.
SONN, Tamara. Uma Breve
História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.
Mapas e Imagens
Mapa
01: Península Arábica
Google
Maps
Mapa
02: A Rota da Seda
SONN,
Tamara. Uma Breve História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, pp.
110.
Imagem
01: Profeta
Muḥammad
Imagem
02:
Profeta Muḥammad e o Arcanjo Gabriel
Curta
nossa página no Facebook!
Inscreva-se
no nosso canal no YouTube!