domingo, 26 de março de 2017

#Vídeo-Aula 04 - Islã e Muçulmanos II - O Califado Ortodoxo (632-661)





Comprando os livros estudados para este vídeo pelos links a seguir, você colabora com uma pequena comissão para o Orientalismo na Rede!

“Alcorão” (tradução para o português por Helmi Nasr)

“Alcorão” (tradução para o português por Samir El Hayek)

“Uma História dos Povos Árabes” (HOURANI, Albert)

“Uma Breve História do Islã” (SONN, Tamara)

“O Islã Clássico: itinerários de uma cultura” (PEREIRA, Rosalie Helena de Souza (org.)

“Diccionario de Historia Árabe e Islámica” (MAÍLLO SALGADO, Felipe)


terça-feira, 7 de março de 2017

#Texto 3 - Islã e Muçulmanos II - O Califado Ortodoxo (632-661)

Por Thiago Damasceno P. Milhomem
(Mestrando em História
pela Universidade Federal de Goiás)

Revisão textual:
Priscila Vieira

Revisão religiosa:
Imam ᶜAbdu amad Abu Yahia



“Ó, homens, se adorais a Muḥammad, Muḥammad está morto; se adorais a Deus, Deus está vivo”. Segundo um relato tradicional sunnita, assim disse Abū Bakr após a morte do Profeta Muḥammad, fundador do Islã e líder do Estado de Medina. Na época de sua morte, a Umma, a comunidade muçulmana, ficou abalada, pois o cargo de líder da comunidade ficou vazio. O cargo passou então às mãos dos califas.  Abū Bakr foi um antigo companheiro do Profeta e o primeiro califa do Islã, o primeiro de muitos homens que lideraram a expansão árabe-islâmica para além da Península Arábica. 

Vamos falar hoje sobre o Califado Ortodoxo ou Rāchidūn, conhecido na historiografia árabe como “Califado Corretamente Guiado” ou “Califado Bem Encaminhado”, isso para a vertente sunnita do Islã. Lembrando que aqui vamos introduzir a história do Islã passo a passo, um pouco de tudo em cada texto. 

Pois bem... Após a morte do Profeta Muḥammad, houve um período de crise ocasionado pelo vazio na sucessão ao cargo de chefe do Estado de Medina. Há fontes que dizem que o próprio Profeta, antes de falecer, deixou a chefia da comunidade a Abū Bakr, seu sogro e antigo companheiro. Outras fontes dizem que o Profeta faleceu sem nomear um sucessor, e um círculo de fiéis próximo a ele elegeu Abū Bakr como califa. Esse termo designa o sucessor do Profeta para liderar a comunidade. Abū Bakr foi soberano de 632 a 634 e iniciou o tradicionalmente conhecido Califado Ortodoxo, que vigorou até 661, ou seja, por 29 anos. Depois desse califado, vieram outros dois, o omíada e o abássida. Sobre eles falaremos no próximo texto. 

O Califado Ortodoxo contou com outros califas que sucederam Abū Bakr, que foram ᶜUmār (que governou de 634 a 644), ᶜUtmān (de 644 a 656) e ᶜAlī (soberano de 656 a 661). Nesse período, o Império Islâmico – assim pode ser chamado a partir do califado de ᶜUmār – se expandiu pelo Oriente Médio e norte da África. Marcado por conflitos políticos internos, esse califado chegou ao fim, levando ao poder a família omíada no ano de 661. Antes de continuar, vamos entender mais sobre o termo “califa”. Eu já disse que o termo faz menção aos “sucessores do Profeta”, mas há mais a se falar sobre isso.

O equivalente técnico para o termo era “Imām Supremo” e o equivalente honorífico era “Príncipe dos Crentes”. Os califas não eram considerados profetas, mensageiros divinos ou porta-vozes de revelações. Como dito na aula anterior, religiosamente, a última mensagem divina foi expressa à humanidade por meio do Profeta Muḥammad. Embora ainda mantivessem uma aura de santidade e escolha divina, a autoridade dos califas era política. O termo, pronunciado em árabe clássico é khalifa, que significa “sucessor”. Sim, eu pronunciei o “kha” arranhado na garganta, pois é assim a pronúncia no árabe clássico. Por questões de transliteração para outros idiomas, se convencionou aqui no Ocidente a pronúncia com “ca”, “califa”. Por questão de respeito, os muçulmanos sunnitas dizem “Que Deus esteja satisfeito com eles” ao mencionarem o Califado Ortodoxo ou o nome de algum dos califas.

A propósito, para transcrever termos árabes para a nossa língua, utilizo o sistema de transliteração adotado na obra Tradução do Sentido do Nobre Alcorão, do Doutor Helmi Nasr, professor de Estudos Árabes e Islâmicos na Universidade de São Paulo, publicada pelo Complexo de Impressão do Rei Fahd, da Arábia Saudita, em Medina, em 2005.

Voltando aos califas ortodoxos...

Para os muçulmanos sunnitas, o período do Califado Ortodoxo foi uma verdadeira Idade do Ouro onde floresceram as genuínas virtudes do Islã. Porém, historicamente, a Idade do Ouro do Islã aconteceria mais tarde durante o apogeu do califado abássida, cuja soberania foi de 750 a 1258.

Os quatro califas ortodoxos eram próximos ao Profeta Muḥammad por laços sanguíneos e matrimoniais. Abū Bakr e ᶜUmār eram sogros do Profeta, ᶜUtmān era seu genro e ᶜAlī era seu primo e genro. Os quatro basearam seus regimes no Alcorão e no comportamento do Profeta, ou seja, no que o Profeta havia feito e dito em diversas ocasiões. Por meio de acordos econômicos, pregações religiosas e conflitos militares, o Islã, enquanto entidade política e religiosa, no período do califado ortodoxo, se expandiu pelo Oriente Médio - abarcando a Palestina, a Síria, o Iraque e o Irã - e pelo norte da África, abarcando os litorais do Egito e da Líbia.



A capital desse Império Islâmico ainda era a cidade de Medina. Muitos confundem pensando que era Meca, mas Meca era e a inda é “apenas” a principal cidade santa do Islã. E sim, já podemos falar de um Império Islâmico fundado pelos árabes, que se expandiu levando sua política, religião e língua. Na história humana, a expansão islâmica foi algo rápido, eficiente, avassalador, realmente memorável. Em alguns anos o centro da vida política e cultural no Oriente saiu das terras do Império Bizantino e do Império Sassânida para Meca e Medina. Para explicar o porquê disso, devemos nos lembrar do contexto do Oriente Médio e do Mundo Mediterrâneo no começo da Idade Média, contexto esse apresentado na aula anterior.

Primeiramente, é importante mencionar que registros arqueológicos indicam que o mundo Mediterrâneo, ou seja, as terras em torno do mar Mediterrâneo, estavam em declínio devido às invasões dos povos bárbaros ou germânicos, ao enfraquecimento do mercado urbano e à não-manutenção dos terraços e obras agrícolas. E não só o mundo Mediterrâneo enfraquecia, mas também os impérios bizantino e sassânida devido a epidemias de pestes e longos anos de guerras entre si. Nesse mundo em declínio, os árabes-muçulmanos conquistadores não eram uma horda tribal desorganizada e inexperiente, mas uma força organizada. Antes do advento do Islã havia unidades políticas árabes que entraram em acordo tanto com o Império Bizantino quanto com o Sassânida, e essas unidades políticas eram responsáveis por proteger as fronteiras desses impérios. Isso deu a muitos árabes experiência política e militar. E em termos táticos, o camelo, animal de montaria típico dos árabes, era mais vantajoso que o cavalo em campanhas militares travadas em grandes áreas. Isso tudo, além do fervor de convicção dos árabes - ou seja, a mentalidade de estar fazendo algo certo, que era a vontade de Deus - deu a eles um tipo diferente de força, como diz o historiador Albert Hourani.

Além disso, devemos ver também a relação entre os conquistadores árabes-muçulmanos e as populações conquistadas. Surge daí a questão: como o Islã lidou com pessoas de outras crenças? Começo mencionando que os muçulmanos baseiam seu comportamento não só no comportamento do Profeta, mas também no Alcorão, o livro sagrado do Islã, do qual falaremos mais daqui a pouco. O início do capítulo 02, versículo 256 do Alcorão, diz: “Não há compulsão na religião!”. Ou seja, um muçulmano não pode forçar ninguém a se converter, logo, é recomendada a tolerância, principalmente com o chamado “Povo do Livro”, que são os judeus e os cristãos, fiéis que também se baseiam em escrituras consideradas sagradas e reveladas.

Sendo assim, os califas muçulmanos toleraram em seus domínios membros de outras crenças a partir do estabelecimento de acordos. Tais acordos estipulavam o pagamento de impostos, garantindo aos não-muçulmanos em território islâmico proteção e autonomia em seus assuntos desde que nesses assuntos não estivessem incluídos muçulmanos, caso contrário, a lei islâmica deveria julgar os episódios.

O versículo 29 do capítulo 09 ordena a cobrança do al- jizyah especificadamente aos judeus e cristãos, o Povo do Livro. O valor da al-jizyah variava entre 12 e 48 dracmas por pessoa. Esse valor era usado para o orçamento do Estado e para proteger seus pagantes de qualquer ameaça. As maiores relações de tolerância e coexistência religiosa foram observadas na Espanha medieval, mas sobre isso teremos um texto específico.

Albert Hourani afirma que as populações conquistadas pelos árabes-muçulmanos não se importavam muito, no geral, com quem os governava - se fossem gregos, iranianos ou árabes - desde que tivessem segurança, paz e impostos razoáveis. E foi exatamente isso que, majoritariamente, os conquistadores árabes-muçulmanos levaram inspirados na mensagem de justiça social do Alcorão.  Além disso, de início os impostos dos novos conquistadores árabes eram menores do que os antigos soberanos bizantinos e sassânidas, favorecendo ainda mais a população a aceitar o novo regime islâmico.

Segundo Tamara Sonn, o Islã não forçava a conversão, mas o sistema de cobrança de impostos a mais para muçulmanos estimulava econômica e socialmente a conversão. Fora isso, como já falei, havia a mensagem de justiça social do Alcorão, preocupada com a igualdade entre os homens e a redução da pobreza e das desigualdades sociais. E agora é chegada a hora de falarmos do livro sagrado dos muçulmanos, o famoso Alcorão.  

Como abordamos no texto anterior, a tradição religiosa considera que a palavra, o discurso de Deus foi revelada em árabe ao Profeta Muḥammad durante um período de 23 anos, período esse em que ele ditou o conteúdo e o estilo da Revelação para seus companheiros. Além de registrarem na memória, registravam em pedras, omoplatas de camelo, couro de animais e papiros. Segundo Josep Puig Montada, em 633, após a Batalha de Yamāma, Abū Bakr recomendou a compilação escrita do Alcorão, tarefa que seus sucessores ᶜUmār e  ᶜUtmān continuaram. No califado de ᶜUtmān, de 644 a 656, a compilação do Alcorão foi concluída, estabelecendo assim a versão canônica atual.

O termo “Alcorão” vem do árabe al-qur`ān, que significa “A Leitura” ou “A Recitação”, fazendo menção à forma de sua revelação ao Profeta, segundo a religião. O Alcorão é a principal fonte para a lei islâmica, sendo composto por princípios que regulam a vida desde o aspecto privado ao social, mas como contém princípios compilados em um espaço e em um período específico, o livro sagrado precisa ser interpretado e analisado tendo em conta essa noção de contextualização da mensagem e segundo alguns critérios e com obras legais complementares, que surgiram posteriormente durante a expansão islâmica.

E como eu disse no texto anterior, o Islã aceita partes das consideradas revelações divinas anteriores a outros povos, como judeus e cristãos. Tanto que 1/3 das histórias narradas no Alcorão serem encontradas na Bíblia.

O Alcorão registra a língua árabe em sua forma clássica, chamada de fuṣḥa. Fazendo uma comparação por alto, registra a língua em sua forma clássica tal como a obra Os Lusíadas, de Camões, registra o português em sua forma clássica, sendo um marco da língua portuguesa. O árabe clássico deu origem ao árabe literário moderno e ao árabe literário moderno falado ou árabe coloquial, chamado de amia. O árabe clássico não é muito falado no cotidiano dos países árabes, mas é o árabe dos contextos religiosos e eruditos. Segundo o estudioso Josep Puig Montada, o árabe clássico é bastante semelhante ao árabe falado pelos beduínos antes do surgimento do Islã, tanto que ele e Albert Hourani concordam que os gramáticos árabes, no século IX, recorreram a beduínos para tratar sobre dúvidas e disputas em relação à língua.

O estilo de escrita do Alcorão, bem como sua proclamação, recitada, praticamente cantada, também tem suas relações com a poesia árabe pré-islâmica, mas isso requer um estudo à parte. O importante é lembrar que, junto à religião, a língua árabe, considerada para o Islã como a língua escolhida por Deus para a Revelação, se difundiu, tornando-se uma das grandes características culturais do chamado mundo árabe-islâmico ou apenas mundo islâmico.

No período medieval, os convertidos de origem não árabe liam o Alcorão em árabe, isso, obviamente, incentivou a propagação do idioma. Para Albert Hourani, em certos lugares o árabe se expandiu antes mesmo do advento do Islã, por meio de tribos nômades, como no interior da Síria e no oeste do Iraque, onde grande parcela da população já falava árabe no contexto da conquista muçulmana. Mas, para Josep Puig Montada, tais populações não foram significativas para a expansão do idioma árabe. Conforme esse autor, essas tribos árabes assentadas nos desertos sírios e egípcios representaram pouco para a consolidação da língua.

Já vemos aqui dois sentidos para o termo árabe: aquele indivíduo originário da Península Arábica, ou aquele indivíduo que fala árabe. Lembrando que “árabe” e “muçulmano” não são sinônimos. Por ter surgido no Oriente Médio, o Islã tem forte relação com a cultura árabe, e muitos árabes são muçulmanos, mas o Islã se expandiu mais do que a cultura árabe, tanto que a geografia de alcance da cultura islâmica é bem maior do que o mundo árabe, vamos comparar os mapas.





Os quatro países com maior número de muçulmanos, por exemplo, não são de cultura predominantemente árabe. Esses países são, em ordem decrescente de número de muçulmanos: Indonésia, Paquistão, Índia e Bangladesh.

De todo modo, quanto mais fiéis o islã conseguia, mais usuários do árabe surgiam. De início não houve tal adesão expressiva, pois a língua árabe era desconhecida para a maioria da população conquistada. Nos primeiros tempos de expansão do Islã, o árabe não era predominante na administração e na vida cotidiana. Herdando populações e estruturas dos impérios bizantino e sassânida, as primeiras administrações árabes utilizavam também as línguas desses impérios, como o latim, o grego, o copta e o persa. A conquista árabe, além de levar sua língua como toda expansão imperial, também incluiu repovoamento, levando uma massa crítica arabófona – falante de árabe - de uma superpovoada Península Arábica para outras regiões, permitindo que aos poucos o árabe substituísse o grego e as línguas locais.

Os califas ortodoxos criaram a base de uma administração civil, mas com o tempo seus regimes não puderam resolver os problemas que surgiam em uma sociedade em expansão. O Islã enquanto sistema legal ainda não estava consolidado e, na prática, os califas ortodoxos eram mais vistos como árbitros e conselheiros do que como soberanos, tendo poder para estabelecer decisões. Governadores na Síria e no Iraque tentavam se tornar cada vez mais independentes do governo de Medina. Além disso, havia os conflitos internos que deram origem a maior separação religiosa e política entre a comunidade, influenciado no futuro surgimento do sunnismo e do xiismo, como veremos adiante em outras aulas. Logo, conclui-se que o Califado Ortodoxo também foi marcado por guerra civil.

Por enquanto, precisamos saber que os conflitos internos se davam na questão da sucessão do cargo de califa e nas escolhas arbitrárias de alguns califas ortodoxos para essas sucessões. Foram palco desses conflitos as cidades-acampamentos, que eram os acampamentos militares estabelecidos em terras conquistadas que deram origens a núcleos urbanos e futuras cidades, como Basra e Kufa no Iraque e Cairo no Egito.

A disputa pelo poder levou ao assassinato de ᶜUmār por motivos de vingança pessoal e ao assassinato de ᶜUtmān em um movimento de revolta em Medina apoiado por soldados do Egito. O pretendente à sucessão de ᶜUtmān foi ᶜAlī Ibn Abi Talib, convertido antigo, primo do Profeta e esposo de Fátima, filha do Profeta. Contra ᶜAlī estavam os parentes de ᶜUtmān. Estes se concentraram na cidade-acampamento de Basra e ᶜAlī e seus apoiadores se estabelecerem em Kufa. ᶜAlī derrotou seus opositores, mas se viu diante de Muaᶜawiya, da dinastia omíada, parente próximo de ᶜUtmān e governador da Síria. Após se enfrentarem, as duas forças concordaram com uma arbitragem, uma trégua, tendo delegados dos dois lados. Devido a isso, alguns seguidores de ᶜAlī o abandonaram e seu poder enfraqueceu. Para esses seguidores, a trégua submeteu a vontade de Deus à vontade humana. Nos meses seguintes ᶜAlī acabou sendo assassinado em sua própria cidade, Kufa. Então Muaᶜawiya se proclamou califa, dando origem à dinastia omíada, que governou o Império Islâmico de 661 a 750 e sobre a qual faremos um estudo no próximo texto. 

Até logo e que a paz esteja com todos! 

REFERÊNCIAS

ALCORÃO NOBRE. Tradução do sentido para a língua portuguesa por Helmi NASR.            Al-Madinah: Complexo do Rei Fahd, 2005. 

HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das                    Letras, 2ª edição, 9ª reimpressão, 1994.

MONTADA, Josep Puig. A língua árabe. In: PEREIRA, Rosalie Helena de Souza                 (org.). O Islã Clássico: itinerários de uma cultura. São Paulo: Perspectiva, 2007. p.                51-67.

SALGADO, Felipe Maíllo. Diccionario de Historia Árabe & Islámica. Madrid: Abada                Editores, 2013.


SONN, Tamara. Uma Breve História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

#Texto 2 - Islã e Muçulmanos I - O Surgimento do Islã (610-632)

Por Thiago Damasceno P. Milhomem
(Mestrando em História
pela Universidade Federal de Goiás)

Revisão textual:
Priscila Vieira

Revisão religiosa:
Imam ᶜAbdu amad Abu Yahia


“Em nome de Deus, o Misericordioso, o Misericordiador”, ou em árabe: bismillahi ar-raḥ meni ar-raḥimi. Assim começa qualquer texto de autoria de um muçulmano ou de uma muçulmana. E, com exceção de um dos 114 capítulos do Alcorão, todos os capítulos do livro sagrado dos muçulmanos também começam com essa sentença. Os termos “muçulmano” e “muçulmana” vêm do árabe “muslim”, que significa “submisso” e “submissa”. Na visão religiosa, submissos a Deus. Escrevi pouco até agora, mas já podemos fazer muitas perguntas: Qual a relação entre Islã ou islamismo e os árabes? Quem é esse Deus a quem chamam de Allah? O que é o Alcorão? E afinal de contas, o que é o Islã e onde e quando ele surgiu?

As respostas a essas perguntas são grandes, por isso começo agora uma série de aulas introdutórias sobre a história do Islã. Os principais estudiosos que utilizo para isso são Jamil Almansur Haddad, autor de O Que é Islamismo, Albert Hourani, autor de Uma História dos Povos Árabes; Tamara Sonn, autora de Uma Breve História do Islã; e Felipe Maíllo Salgado, autor de Diccionario de Historia Árabe e Islámica. Esses quatro autores basearam-se tanto em fontes árabes quanto em fontes não árabes. Nossa meta: compreender mais a história dos árabes e dos muçulmanos. Assim, além de conhecer a história de uma importante civilização, vamos combater muitos preconceitos e estereótipos que associam a cultura árabe e o Islã à violência e à ignorância. Vamos transitar dos quentes desertos da Península Arábica até os luxuosos palácios com fontes de água fresca na Espanha medieval. Então, bem vindos a essa viagem histórica e cultural, ou em árabe: ahlan wasahlan.

O Advento do Islã

Introdução

          Antes de tudo quero agradecer a todos pelas visualizações, comentários e curtidas! Tudo isso nos empolga cada vez mais a continuar com esse trabalho. A Internet facilita muito nossa interação com informações e conhecimentos e, no caso de vídeo-aulas, precisamos muito mais da interação com o público, por isso é importante vocês continuarem mandando comentários, crítica e sugestões ao canal, tanto pelo YouTube quanto pela página no Facebook.

 Nesta Aula I, abordaremos o início da história islâmica, no século VII, época da fundação do islã como religião e como Estado, ou seja, como uma organização territorial e política que lançou as bases de uma das mais sofisticadas civilizações do período medieval, contrariando assim a ideia de que religião é sinônimo de regresso. A história nos mostra que nem sempre é assim.


          O Islã surgiu no que se convencionou chamar de porção oriental do mundo, na Península Arábica, do Oriente Médio, no século VII d.C. Seu fundador, como conhecemos hoje, foi Muḥammad Ibn ᶜAbdullāh, reconhecido pela tradição religiosa como “O Profeta”. Vale ressaltar que muçulmanos não adoram Muḥammad, mas Deus, cujo termo em árabe é Allah. Por isso, não é apropriado denominar muçulmanos e muçulmanas de “maometanos” ou “maometanas”. 

Península Arábica. Google Maps

A Península Arábica tem clima predominantemente árido e seu relevo é composto predominantemente por desertos, fatores naturais que influenciaram no modo de vida dos seus habitantes. A organização dos povos árabes era tribal. Os laços entre homens e mulheres se davam por meio da família, do clã e da tribo. Viviam como nômades, os chamados beduínos, transitando pelos desertos criando e vendendo animais; e também viviam como sedentários, plantando nos oásis. Algumas tribos também misturavam os modos de vida nômade e sedentário. Havia também feiras e cidades com seus comerciantes e artesãos. Alianças militares e comerciais eram feitas entre as tribos. A religião tradicional era politeísta. Os árabes adoravam vários deuses e acreditavam que seres sobrenaturais se escondiam em cavernas, pedras, árvores. Além disso, adivinhos enxergavam o futuro. Os muçulmanos árabes atuais chamam essa época politeísta, pré-islâmica, de jahiliah, “época da ignorância, da barbárie”.

Os árabes tinham um modo de vida dinâmico e complexo, dividido em tribos, sem união política, ao menos até meados do século VII. Agora, antes de prosseguir, precisamos visualizar a Península Arábica – ou Arábia - como parte de um mundo maior.

Contexto Histórico do Surgimento do Islã

A Arábia tinha em sua vizinhança o império Bizantino, ou Império Romano do Oriente, e o Império Sassânida, onde hoje é o Irã. Esses dois impérios eram os principais centros de cultura e poder na região do Mundo Mediterrâneo e do Oriente Médio. Também eram próximas à península duas sociedades com organização política e cultural, mas menos expressivas que os dois impérios. Eram o reino da Etiópia, no continente africano, e o reino do Iêmen, no sudoeste da Península Arábica. A proximidade geográfica e certas necessidades sociais proporcionavam trocas comerciais e culturais entre os árabes e os habitantes dos outros Estados e com crentes de importantes religiões monoteístas, como o judaísmo e o cristianismo. Havia inclusive comunidades judaicas e cristãs vivendo na Arábia antes do advento do islã.

          É importante mencionar o constante contato comercial e cultural entre diversos povos desde a antiguidade. O estudioso Mohammed Bamyeh defende que o mundo não europeu da Antiguidade até o século XVI era multicultural, e povos de diferentes culturas se conectavam por meio de rotas comerciais, como a famosa Rota da Seda. Vejamos no mapa. 

A Rota da Seda.
SONN, Tamara. Uma Breve História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, pp. 110.

A Rota da Seda era a antiga rota aberta nos tempos dos gregos e romanos, ligando regiões do Oriente Médio até a China. Ia do mar Mediterrâneo até a Grande Muralha, atravessando a Síria, a Pérsia, o Afeganistão, o Paquistão, a Índia e a Ásia central. Ao longo desse caminho, viajantes, peregrinos e comerciantes enfrentavam desertos e montanhas traiçoeiras, um calor abrasador e temperaturas abaixo de zero, e bandidos de todo tipo. No entanto, o comércio ao longo dessa rota prosperou até que viagens marítimas se desenvolvessem a ponto de serem mais eficientes para grandes distâncias tanto por mar quanto por terra.

O estudioso Mohammed Bamyeh vai ainda mais longe e diz que o multiculturalismo de hoje não nasceu com a Europa e suas grandes navegações, e nem é fruto da globalização. Ele afirma que o que temos hoje é um resurgimento do antigo multiculturalismo do mundo, multiculturalismo esse com o qual a Europa nunca soube lidar. Neste mundo multicultural que Bamyeh fala, nasceu o Islã.

O islã, entidade religiosa, surgiu no ano 610 cristão com as pregações do até então mercador Muḥammad Ibn ᶜAbdullāh, da cidade de Meca, mais conhecido aqui no Brasil como “Maomé”. Por considerar existir certo racismo nesse termo, usarei o nome original em árabe. Afinal de contas, quando se tem um nome estrangeiro, geralmente ele é falado em sua língua nativa, por que não fazer o mesmo com um nome em árabe?

A seguir, algumas imagens do Profeta, mas informo de antemão que a temática é complexa e muito discutida. 

Imagem 01: Profeta Muḥammad




Imagem 02: Profeta Muḥammad e o Arcanjo Gabriel

Já no início do século VII, Meca era um importante centro religioso e comercial, reunindo estátuas de muitos deuses no seu principal templo, a Kaaba. A esse templo eram feitas peregrinações, que contribuíam com o comércio de Meca, fortalecendo ainda mais o poder das principais famílias da tribo coraixita, que dominavam Meca.

Há estudiosos que dizem que os árabes já adoravam a um deus que chamavam de Hubal, ou de Allah, palavra árabe para “deus”. Essa hipótese pode ser verdadeira por 3 argumentos:

1 - Devido à influência das ideias de judeus e cristãos na Península Arábica;
2 - pelo fato de que os árabes não estranharam um homem como Muḥammad pregando sobre um deus chamado Allah. Por certo tempo, ele foi visto apenas como mais um profeta pregador entre tantos outros. Os árabes estranharam mais o fato de Muhammad defender o deus Allah como único deus existente, aproximando sua mensagem do judaísmo e do cristianismo, e não do politeísmo;
3 - fontes islâmicas afirmam que os árabes tinham como divindade principal Allah. O politeísmo se dava por acreditarem em intercessores, que eram entidades sobrenaturais com poder de interceder entre Deus e os homens.

 Mas, em suma, quem foi Muḥammad?

Por ele os muçulmanos têm grande respeito, chegando a basear seus comportamentos, vestimentas e crenças à conduta dele. Ao mencionar o nome do Profeta, os muçulmanos proclamam Salallahu aleihi wa Salam, que pode ser traduzido como “Que a Paz de Deus esteja com ele”.

Muḥammad é chamado de “O Profeta” porque, para o Islã, ele é o último de uma linhagem de mensageiros enviados por Deus para dar a Sua mensagem divina à humanidade. E que mensagem é essa? Que só há um Deus criador e onipotente, que julgará a todos pelos seus atos no Dia do Juízo Final.

O Islã tem uma visão desenvolvimentista e não desconsidera mensagens anteriores, como as presentes no Antigo e no Novo Testamento, mas se considera mais sofisticado e sem certos desvios que judeus e cristãos acabaram seguindo. Portanto, apesar de afirmar haver certos desvios, o Islã respeita os escritos sagrados dos judeus e dos cristãos. Para o Islã, o primeiro profeta foi Adão, e o último, Muḥammad. Antes desse, veio o profeta Jesus Cristo, nascido de uma virgem e realizador de milagres, mas não um filho de Deus, tampouco alguém que morreu numa cruz. Aí estão as principais divergências entre cristianismo e islamismo sobre a natureza de Cristo.

É difícil falar de Muḥammad em termos históricos e científicos. Mas ele existiu e, diferente de muitos outros líderes religiosos, colheu os frutos sociais e políticos da religião que fundou ainda em vida. A dificuldade em falar sobre a vida do Profeta pode ser vista em dois fenômenos: o primeiro é que as fontes árabes que narram sua vida e a formação da comunidade em torno dele são de épocas posteriores a ele e baseiam-se muito em testemunhos orais transmitidos de geração a geração, gerando várias questões no campo da memória. A segunda dificuldade é separar o homem histórico do homem santo, pois muitos textos tentam enquadrá-lo em um modelo ou padrão, o modelo oriental de homem santo de descendência nobre.

Mesmo com essas dificuldades, inerentes a uma pesquisa historiográfica atual, podemos sim falar de um homem fundador de uma religião e de um Estado que se expandiu pelo mundo conhecido na época, um mundo com pessoas que buscavam um sentido para a vida e a maneira correta de vivê-la. Mas não podemos nos esquecer do contexto de vida desse homem, contexto esse já apresentado aqui. No mais, fontes não árabes dos séculos medievais também atestam sobre um império formado pelos árabes.

Feitas essas considerações, continuemos.

Muḥammad nasceu por volta de 570 d.C. em Meca. Sua família pertencia ao ramo Banu Hashin da tribo coraixita, mas não ao ramo mais forte. Os membros da tribo coraixita eram normalmente mercadores. Ele perdeu os pais ainda muito jovem. O pai,  ᶜAbdullāh, faleceu dois meses antes do seu nascimento. A mãe, Amina, faleceu quando ele tinha 6 seis anos. Muḥammad foi então criado pelo seu tio Abu Talib. Casou-se com Kadija, uma viúva comerciante, e cuidou de seus negócios.

Segundo um relato, em uma de suas viagens à Síria, um monge cristão chamado Bahira viu o selo, um sinal da profecia, entre seus ombros. Segundo a tradição, objetos naturais como pedras e árvores também o saudavam. Muḥammad tinha o hábito de ir para o deserto, meditar entre rochas e cavernas, até que um dia, quando tinha 40 anos, teve o encontro com o sobrenatural. Esse episódio é conhecido religiosamente como a Noite do Poder ou a Noite do Destino. Naquela noite, o Arcanjo Gabriel lhe entregou a mensagem de Deus, dizendo-lhe “Recita”. Mesmo analfabeto, Muḥammad assim o fez. Era o início da Revelação divina que duraria 23 anos e seria registrada por escrito no Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos.

Temos até aqui uma breve apresentação da vida de Muḥammad reunindo relatos religiosos e históricos. O sobrenatural que envolve a história de pessoas consideradas santas é normal. Só é considerado errado ou mentiroso quando o santo é um Outro. Explico melhor: certos relatos cristãos medievais divulgam um Muḥammad louco, epilético, mentiroso, falso profeta, estuprador, ladrão e sanguinário. Normal: o Outro era geralmente mal visto. Um cristão medieval que concordasse com os relatos santos sobre Muḥammad estaria legitimando o Islã e denegrindo o cristianismo. O problema é que certas visões exageradamente pejorativas sobre o fundador do Islã existem até hoje, contribuindo para o crescimento de intolerância religiosa. Concordando ou não com os relatos religiosos sobre Muḥammad, é importante saber que para muçulmanos esses relatos são reais e, por envolver crenças de outras pessoas, merecem respeito.

Para a visão islâmica, Muḥammad recebia a Revelação divina em qualquer momento e tranquilamente, sem entrar numa espécie de “transe louco”. Ele então comunicava a mensagem divina para seus Companheiros. Assim foi se formando o Alcorão, mas, sobre o livro, falaremos mais na próxima aula.

Pregando em Meca, obviamente Muḥammad foi perseguido pelas principais famílias coraixitas, sofrendo agressões verbais e físicas e até risco de morte.  Negociar com sua esposa Kadija passou a ser evitado. Em setembro de 622, Muḥammad buscou refúgio na cidade Yatrib, que fica 30 km ao norte de Meca. Futuramente essa cidade seria batizada de Madinat al-Nabi, a “Cidade do Profeta”.

Yatrib tinha tribos de árabes politeístas e de judeus, e precisava de um árbitro para suas disputas. O episódio da ida de Muḥammad para lá ficou conhecido como Hégira e marcou o início do calendário lunar islâmico. O termo Hégira, do árabe hijra, pode ser traduzido como “emigração”, e não tem apenas o sentido de fuga, mas de busca de refúgio em um lugar alheio, diferente.

Em Yatrib, Muḥammad se tornou árbitro das disputas tribais e fundou um Estado que tinha o islã como religião oficial, mas que abarcava outras etnias além da árabe, e outras religiões, como os judeus e o judaísmo. Esse Estado ficou conhecido como Estado de Medina.

Após anos de pregações religiosas, acordos de diversos tipos e batalhas militares, Muḥammad conquistou Meca em 630, fortalecendo seu Estado. O Profeta faleceu dois anos depois, mas já havia unificado política e religiosamente as diversas tribos árabes. E esse foi seu grande feito para a história. Em 632, ano de sua morte, todas as tribos viviam sob a soberania política e religiosa do Islã.

          O Profeta foi enterrado em Medina, cidade que, junto a Meca e Jerusalém, compõe o trio das cidades santas do Islã. Usamos tanto o termo “islã”, mas o que ele significa?

          Islam em árabe pode ser entendido como “submisso a Deus”. A palavra “islam” vem do termo “salam”, que significa “paz”. Mas o conceito oriental de “paz” vai além do nosso ocidental de “ausência de guerra”. “Paz” em árabe inclui união entre corpo e alma, poder e território, enfim, tem um significado de unificação, de união, de junção em diversos aspectos. Por isso os valores islâmicos são aconselhados tanto na vida pessoal dos seus fiéis quanto na vida pública e política. O islã, enquanto conjunto de preceitos de vida, deve ter seus valores presentes na vida do fiel em todos os campos. Para os muçulmanos, o Islã não é apenas uma religião, mas um dīn, um modo de vida.  Esse fiel, o muçulmano, do árabe muslim, “submisso a Deus e à sua vontade”, compõe hoje, segundo instituições islâmicas, um coletivo de mais de 1 bilhão e meio de fiéis no mundo todo, e mais de 1 milhão e 300 mil aqui no Brasil. Desse todo, o número de terroristas é uma minoria, uma porcentagem de 0,19%, conforme pesquisas acadêmicas, não podendo essa porcentagem, desse modo, ser considerada representante do Islã e dos muçulmanos.

          Voltando à nossa história...

          A morte de Muḥammad gerou uma nova fase na vida política e social da Umma, a comunidade muçulmana. A partir de 632, a comunidade foi governada pelos califas, considerados politicamente os “sucessores do Profeta”. Com os califas, o Islã se expandiu para além da Península Arábica. E sobre isso, falaremos na próxima aula.  
         
Referências

Livros e Artigos

BAMYEH, Mohammed A. Árabes e Europeus: Duas Lógicas Antagônicas de Descoberta. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 38, dezembro de 1993, pp. 87-103. Disponível em: www.ces.uc.pt/rccs/includes/download.php?id=522
HADDAD, Jamil Almansur. O Que é Islamismo. São Paulo: Brasiliense, 1981.
HOURANI, Albert. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª edição, 9ª reimpressão, 1994.
SALGADO, Felipe Maíllo. Diccionario de Historia Árabe & Islámica. Madrid: Abada Editores, 2013.
SONN, Tamara. Uma Breve História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.

Mapas e Imagens

Mapa 01: Península Arábica
Google Maps
Mapa 02: A Rota da Seda
SONN, Tamara. Uma Breve História do Islã. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011, pp. 110.
Imagem 01: Profeta Muḥammad
Imagem 02: Profeta Muḥammad e o Arcanjo Gabriel



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